“Sem ler no original seu pensamento não tem valor”
Por Alaya Dullius, com colaboração de Bruno Carlucci
Não é nenhum segredo meu desgosto com algumas questões do
mundo acadêmico. Certamente sou grata aos colegas e professores que me
acolheram em minha curta jornada de um mestrado em Filosofia Antiga. Também
reconheço os trabalhos muito bem pesquisados e fundamentados que aprofundam
diversos assuntos interessantes para mim, e dos quais me benefício enormemente.
Desconsiderando minhas costumazes críticas quanto a reciclagem
de assuntos apenas para atingir pontuações de publicações, a falta de
envolvimento com o assunto ao qual se dedica, escolhendo o tema de pesquisa
apenas por conveniência ou busca de fama. Ou o fato de alguém se dedicar a
estudar algo não com o intuito de aprofundar uma pesquisa -- mas de se
apropriar do tema para se tornar autoridade nele mesmo que desgoste e discorde
do tema em si, inclusive trazendo o tema por um viés que, para quem o aprecia,
parece ridículo. E claro, as constantes disputas de ego, debates pomposos,
discussões enfadonhas, uso de vocabulário pedante propositalmente e os enfoques
absolutamente enviesados que desconsideram características de algum filosofo
simplesmente por que não lhes apraz ou não cabe em seus pré-conceitos... enfim,
desconsiderando vários dos problemas do academicismo vazio, há uma questão que
sempre me alfineta...
O tal de “ler no original”.
Ler no original é melhor? Sem dúvida! Claro!
Mas antes de ser mestre em filosofia eu sou tradutora por
formação, e cansei de ver descaso com o trabalho dos tradutores.
Cansei de ver gente ser desdenhada como se o simples fato de
não ter lido no original tornasse necessariamente a compreensão da pessoa sobre
o tema equivocada. “Ah você já leu todos os livros de fulano de tal? Mas não
leu no francês, então não compreendeu, logo sua opinião não vale”.
Como tradutora eu sei que cada língua carrega um mundo. “Os
limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”, algo assim, diria
Wittgenstein. Como tradutora eu sei que palavras possuem nuances únicas que nem
sempre são facilmente traduzíveis. Como tradutora acho inclusive importante, no
que tange algumas temáticas da filosofia pelo menos, que no mínimo se conheça a
terminologia técnica na língua original, para captar bem o sentido do que está
sendo dito.
Mas como tradutora eu também valorizo o trabalho dos
tradutores. Não são todos traidores. Eu participei de muitas aulas de estudos
linguísticos, teoria da tradução, Saussure, Derrida, Chomsky, Rosemary Arrojo,
Nida. Eu debati muito sobre a tradução de “textos sensíveis”, “linguagem
poética”, “terminologia técnica”. E eu aprendi que a tradução muitas vezes é
sim possível, especialmente quando o tradutor tem conhecimento da área que
traduz.
Conhecer a língua fonte é útil e importante, não estou
negando isso. Mas conhecer o assunto, em suas nuances, interpretações, autores
periféricos, autores correlatos, dominar o tema, é muito mais importante!
Não adianta nada dominar uma língua se não há boa vontade
para investigar o tema. Ler no original não é selo de “melhor compreensão”.
Facilita a compreensão, mas não garante!
Até poderíamos dizer que talvez ler Lao Tzu, com
traduções que vem do chinês antigo ao português, seja mais complicado. Talvez
seja mais complexo conseguir uma reta compreensão do Kata Upanishad
traduzido do sânscrito ao português, ou entender um sutra tibetano sem se
perder no estilo de linguajar tão diferente deles.
Contudo falta a muitos acadêmicos o traquejo dos tradutores,
parece que consideram as línguas um simples sistema rígido de decodificação. Se
apegam à forma da fonte e terminam por traduzir textos que na língua meta ficam
ininteligíveis. Parece que muitas vezes é mais um exercício de filologia do que
de tradução.
Um bom tradutor conhece mais do que a língua, ele conhece o
assunto!
Mas zombar de alguém por que leu em inglês e não em francês,
ou preferiu o italiano ao original em inglês... quando o autor é nativo (no
tempo e espaço) dessas línguas modernas... ai é demais!
Antes de tudo sou formada em tradução, enxergo a língua como
algo vivo, maleável, volátil. Estudei um pouco de latim, grego, francês,
alemão, espanhol. Mas cansei de ser diminuída por ouvir que “se você não ler
fulano no original em francês não vale”. Cansativo! Bons tradutores existem! –
E ao invés de tentar aprender em alguns meses uma língua nova, “gasto” esses
meses e leio traduções, me aprofundo mais ainda no assunto!
Acho lamentável que se critique o trabalho de alguém por que
em alguma citação o autor fez uso de uma tradução indireta de uma obra
clássica. – “Não pode citar Homero sem ser no grego, não pode citar Platão sem
ser no grego! Lamentável que você tenha usado uma tradução indireta de Proclo”
– Haja paciência.
Novamente, não é o domínio da língua que garante a
compreensão. Não desmereço o trabalho de nenhum colega acadêmico só por que ele
lançou mão de uma citação traduzida!
Conheço muitas pessoas que sabem ler tibetano, e acham que
com um pouco de estudo em budismo se tornam tradutores proficientes. Como se
bastasse ser um codificador ambulante. Conheço também pessoas que possuem décadas
de estudo em budismo, em todas as suas nuances e abrangências filosóficas, e
mesmo sem dominar o tibetano compreendem na terminologia traduzida onde o
tradutor “especialista” falhou, pois dominam o tema como ninguém e sabem
exatamente o que tal palavra quer dizer naquele contexto.
Sim, admito a importância de eu mesma aprender o copta. E já
estou com meu “Aprenda copta em 20 lições aqui do meu lado” -- será um esforço
para o futuro. Mas meu ponto é, ser uma tradução não torna algo sem valor!
Saber a língua original não torna a compreensão necessariamente melhor!
E há ainda outra questão a ser colocada! O elitismo de
publicar livros onde as citações são colocadas apenas na língua original! Ficam
os acadêmicos em seus pomposos castelos de areia debatendo o quão sapientes
são; mas suas pesquisas não se tornam acessíveis ao público que se interessa
pelo tema! Quantas vezes vi livros publicados, com temas de interesse geral (e
não apenas pesquisa de nicho acadêmico), onde o texto em português é recheado
de citações em alemão, italiano, francês. Ou, no caso da filosofia antiga, o
uso dos termos em grego não é sequer transliterado, as palavras são mantidas no
alfabeto grego, sem nem uma nota de rodapé, como se todo leitor tivesse a
obrigação de conhecer esta língua! Será que percebem a arrogância desse tipo de
ação?
Tradutores são agentes importantes em nosso mundo. Aprofundar
a compreensão filosófica e intuitiva é mais importante que aprender códigos. O
“Logos” da alma não tem língua. No âmbito da compreensão profunda, é possível
ir além do mero domínio lexical.
Excelente !!!! Muito bem pontuado. Parabéns. Sou acadêmica, professora universitária, PhD e "tradutora leiga" de assuntos que domino razoavelmente e concordo plenamente. Parabéns.
ResponderExcluirSim,
ResponderExcluirabaixo os magos negros da forma, que as línguas de fogo do LOGOS, incinerem suas impertinências...