quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

"Se não leu no original não vale" - A desvalorização dos tradutores no academicismo.

 “Sem ler no original seu pensamento não tem valor”

Por Alaya Dullius, com colaboração de Bruno Carlucci


Não é nenhum segredo meu desgosto com algumas questões do mundo acadêmico. Certamente sou grata aos colegas e professores que me acolheram em minha curta jornada de um mestrado em Filosofia Antiga. Também reconheço os trabalhos muito bem pesquisados e fundamentados que aprofundam diversos assuntos interessantes para mim, e dos quais me benefício enormemente.

Desconsiderando minhas costumazes críticas quanto a reciclagem de assuntos apenas para atingir pontuações de publicações, a falta de envolvimento com o assunto ao qual se dedica, escolhendo o tema de pesquisa apenas por conveniência ou busca de fama. Ou o fato de alguém se dedicar a estudar algo não com o intuito de aprofundar uma pesquisa -- mas de se apropriar do tema para se tornar autoridade nele mesmo que desgoste e discorde do tema em si, inclusive trazendo o tema por um viés que, para quem o aprecia, parece ridículo. E claro, as constantes disputas de ego, debates pomposos, discussões enfadonhas, uso de vocabulário pedante propositalmente e os enfoques absolutamente enviesados que desconsideram características de algum filosofo simplesmente por que não lhes apraz ou não cabe em seus pré-conceitos... enfim, desconsiderando vários dos problemas do academicismo vazio, há uma questão que sempre me alfineta...

O tal de “ler no original”.



Ler no original é melhor? Sem dúvida! Claro!

Mas antes de ser mestre em filosofia eu sou tradutora por formação, e cansei de ver descaso com o trabalho dos tradutores.

Cansei de ver gente ser desdenhada como se o simples fato de não ter lido no original tornasse necessariamente a compreensão da pessoa sobre o tema equivocada. “Ah você já leu todos os livros de fulano de tal? Mas não leu no francês, então não compreendeu, logo sua opinião não vale”.

Como tradutora eu sei que cada língua carrega um mundo. “Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”, algo assim, diria Wittgenstein. Como tradutora eu sei que palavras possuem nuances únicas que nem sempre são facilmente traduzíveis. Como tradutora acho inclusive importante, no que tange algumas temáticas da filosofia pelo menos, que no mínimo se conheça a terminologia técnica na língua original, para captar bem o sentido do que está sendo dito.

Mas como tradutora eu também valorizo o trabalho dos tradutores. Não são todos traidores. Eu participei de muitas aulas de estudos linguísticos, teoria da tradução, Saussure, Derrida, Chomsky, Rosemary Arrojo, Nida. Eu debati muito sobre a tradução de “textos sensíveis”, “linguagem poética”, “terminologia técnica”. E eu aprendi que a tradução muitas vezes é sim possível, especialmente quando o tradutor tem conhecimento da área que traduz.

Conhecer a língua fonte é útil e importante, não estou negando isso. Mas conhecer o assunto, em suas nuances, interpretações, autores periféricos, autores correlatos, dominar o tema, é muito mais importante!

Não adianta nada dominar uma língua se não há boa vontade para investigar o tema. Ler no original não é selo de “melhor compreensão”. Facilita a compreensão, mas não garante!

Até poderíamos dizer que talvez ler Lao Tzu, com traduções que vem do chinês antigo ao português, seja mais complicado. Talvez seja mais complexo conseguir uma reta compreensão do Kata Upanishad traduzido do sânscrito ao português, ou entender um sutra tibetano sem se perder no estilo de linguajar tão diferente deles.

Contudo falta a muitos acadêmicos o traquejo dos tradutores, parece que consideram as línguas um simples sistema rígido de decodificação. Se apegam à forma da fonte e terminam por traduzir textos que na língua meta ficam ininteligíveis. Parece que muitas vezes é mais um exercício de filologia do que de tradução. E diria Plotino que nem todo filólogo é filósofo.

Um bom tradutor conhece mais do que a língua, ele conhece o assunto!

Mas zombar de alguém por que leu em inglês e não em francês, ou preferiu o italiano ao original em inglês... quando o autor é nativo (no tempo e espaço) dessas línguas modernas... ai é demais!

Antes de tudo sou formada em tradução, enxergo a língua como algo vivo, maleável, volátil. Estudei um pouco de latim, grego, francês, alemão, espanhol. Mas cansei de ser diminuída por ouvir que “se você não ler fulano no original em francês não vale”. Cansativo! Bons tradutores existem! – E ao invés de tentar aprender em alguns meses uma língua nova, “gasto” esses meses e leio traduções, me aprofundo mais ainda no assunto!

Acho lamentável que se critique o trabalho de alguém por que em alguma citação o autor fez uso de uma tradução indireta de uma obra clássica. – “Não pode citar Homero sem ser no grego, não pode citar Platão sem ser no grego! Lamentável que você tenha usado uma tradução indireta de Proclo” – Haja paciência.

Novamente, não é o domínio da língua que garante a compreensão. Não desmereço o trabalho de nenhum colega acadêmico só por que ele lançou mão de uma citação traduzida!

Conheço muitas pessoas que sabem ler tibetano, e acham que com um pouco de estudo em budismo se tornam tradutores proficientes. Como se bastasse ser um codificador ambulante. Conheço também pessoas que possuem décadas de estudo em budismo, em todas as suas nuances e abrangências filosóficas, e mesmo sem dominar o tibetano compreendem na terminologia traduzida onde o tradutor “especialista” falhou, pois dominam o tema como ninguém e sabem exatamente o que tal palavra quer dizer naquele contexto.

Recentemente fiz uma tradução crítica (e indireta) de um apócrifo gnóstico – O Apócrifo de João (Publicada no livro “A Gnosis de João”, editora Garbha-Lux) – me baseando em quatro traduções em inglês de especialistas renomados da área que verteram o texto do copta ao inglês. Além dessas quatro versões cotejei com uma quinta, em espanhol. Estudo o assunto a cerca de vinte anos, conheço todos os textos correlatos da mesma descoberta arqueológica, do mesmo contexto. Sei exatamente do que o texto está tratando. Quando tive dúvidas terminológicas consultei os termos técnicos em grego, os dicionários gregos e especialistas. Sei que os cinco tradutores nos quais me baseei para fazer a minha tradução indireta são extremamente capazes tanto no copta quanto no assunto, e por isso posso confiar no trabalho deles. 

Sim, admito a importância de eu mesma aprender o copta. E já estou com meu “Aprenda copta em 20 lições aqui do meu lado” -- será um esforço para o futuro. Mas meu ponto é, ser uma tradução não torna algo sem valor! Saber a língua original não torna a compreensão necessariamente melhor!

E há ainda outra questão a ser colocada! O elitismo de publicar livros onde as citações são colocadas apenas na língua original! Ficam os acadêmicos em seus pomposos castelos de areia debatendo o quão sapientes são; mas suas pesquisas não se tornam acessíveis ao público que se interessa pelo tema! Quantas vezes vi livros publicados, com temas de interesse geral (e não apenas pesquisa de nicho acadêmico), onde o texto em português é recheado de citações em alemão, italiano, francês. Ou, no caso da filosofia antiga, o uso dos termos em grego não é sequer transliterado, as palavras são mantidas no alfabeto grego, sem nem uma nota de rodapé, como se todo leitor tivesse a obrigação de conhecer esta língua! Será que percebem a arrogância desse tipo de ação?

Tradutores são agentes importantes em nosso mundo. Aprofundar a compreensão filosófica e intuitiva é mais importante que aprender códigos. O “Logos” da alma não tem língua. No âmbito da compreensão profunda, é possível ir além do mero domínio lexical.


2 comentários:

  1. Excelente !!!! Muito bem pontuado. Parabéns. Sou acadêmica, professora universitária, PhD e "tradutora leiga" de assuntos que domino razoavelmente e concordo plenamente. Parabéns.

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  2. Sim,
    abaixo os magos negros da forma, que as línguas de fogo do LOGOS, incinerem suas impertinências...

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