sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Cada um com sua Verdade! Há uma Verdade única? Ela importa na busca espiritual?


Publicação de autor convidado

A VERDADE COMO UM VALOR FUNDAMENTAL NA BUSCA ESPIRITUAL
                                                                      Vinícius Dickson Rezende


O mundo atual do século XXI é, de diversas formas, um mundo muito diferente daquele em que Helena Petrovna Blavatsky, a fundadora da moderna Sociedade Teosófica, viveu e produziu suas obras. A informação encontra-se livre e disseminada à distância de um clique em um “smartphone”, embora não democraticamente acessível a todos e em todas nações, é possível portar bibliotecas inteiras em dispositivos eletrônicos e trocar conhecimentos com pessoas de diversas partes do mundo bem como a um ocidental chegar ao remoto Tibete com relativo  conforto, segurança e rapidez. 
Vivemos sob o estímulo constante do novo e da informação, mas é duvidoso que Helena Blavatsky pensaria que, por isso mesmo, nos tornamos mais sábios intelectual e espiritualmente. Blavatsky defendia que no coração de todas as grandes religiões, sob o disfarce do símbolo, alegoria e ritual, subsiste uma Antiga Sabedoria, tão antiga quanto o homem quando este se converteu em pensador. Essa sabedoria a qual denominou de Theosophia, a sabedoria divina, é em sua essência uma profunda investigação da Verdade manifesta no homem, na natureza e no universo. A palavra Verdade aparece no lema desta sociedade  - Satyat Nâst paro Darma- embora haja certa discussão sobre a tradução, “não há religião superior a Verdade”, o que não se discute é o valor intrínseco atribuído à palavra Verdade grafada em maiúscula naquela proposição.

Todos reconhecemos que a verdade possui um valor intrínseco e vale a pena ser buscada; a verdade é, portanto, superior à falsidade assim como o conhecimento é superior à ignorância, tendo implicações não só epistemológicas, mas também éticas. Universidades, escolas, ciência, religião, filosofia, política, economia, etc; muitas, senão quase todas as atividades humanas se baseiam em algum conceito de verdade e na possibilidade se obter algum conhecimento verdadeiro da realidade. A Verdade grafada em maiúsculas significa algo ainda mais fundamental, o mysterium magno da existência de todas as coisas bem como dos significados, é o grande mistério sobre o qual se debruçaram gerações de sábios, filósofos, cientistas, poetas, místicos e religiosos.

A espiritualidade mais genuína é uma tentativa de exprimir aquela indizível Verdade através de uma forma de viver ética, altruísta e compassiva, de modo que, unificando nossa a consciência com a própria natureza daquela Verdade que buscamos, possamos compreendê-la em sua totalidade, todavia, não pelas vias do mero intelecto, mas de uma instância superior. 
A fundação da Sociedade Teosófica bem como a difusão da antiga Tradição-Sabedoria causou um profundo impacto na cultura e espiritualidade do século XIX e dos tempos vindouros. Termos como Karma e reencarnação, antes restritos ao Oriente, tornaram-se lugar comum na linguagem cotidiana, por outro lado, ensinamentos profundamente filosóficos e metafísicos foram sendo gradualmente subvertidos, ganhando contornos que não tinham originalmente; ideias particulares que, embora pudessem ser rastreadas à sua fonte, não possuiam nenhuma fidelidade ao original. Expostas por líderes carismáticos, originaram grupos e seitas  pseudo-esotéricas as mais variadas, e isto culminou com o que hoje chamamos de “new age” com muito apelo a mentes excessivamente crédulas.

Estudar espiritualidade e literatura mística no século XXI é caçar pérolas em um mar de falsas informações e falsos caminhos que, embora fáceis, nos afastam da meta original. Mais difícil ainda é a definição de verdade de nossos tempos, pois ao que parece torna-se cada vez mais difícil para as pessoas distinguirem fatos de opiniões e a realidade de crenças e expectativas. Tanta informação disseminada, longe de se converter em conhecimento, parece ter se tornado uma espécie de distração, um ruído, fazendo com que as pessoas permaneçam no conforto da superficialidade e exterioridade ao invés de buscarem uma compreensão profunda sobre qualquer coisa.

A palavra verdade está cada vez mais vazia de significado. É comum no discurso atual ouvirmos e lermos coisas como “eu penso desta forma, esta é a minha verdade e você precisa respeitar”, como se a verdade se tratasse de algo inteiramente subjetivo e pessoal. Tal argumento pode parecer tolerante à primeira vista, mas nele está implícita a necessidade de se encerrar qualquer debate sem um devido processo de reflexão. Ora, a verdade é singular e ela é independente de preferências, crenças e expectativas pessoais. A negação de que existam verdades pode conduzir a um relativismo e cinismo que minam qualquer possibilidade de conhecimento, invalidando todos os esforços humanos nesse sentido, pois afinal, se todas as opiniões e crenças são verdades e não há nada como uma verdade fora de mim, não há nenhum sentido em buscar tal coisa.

A lógica é uma ferramenta utilizada para verificar o valor “verdade” de uma determinada proposição. Quando dizemos que “não existem verdades”, esta proposição em si mesma postula uma verdade absoluta que é, no entanto, a sua própria negação, ferindo assim todos os princípios da lógica formal e interpretativa. Uma das concepções filosóficas de verdade pressupõe a validade de um argumento, ou seja, de sua coerência interna como pensamento discursivo.

 A concepção romana de verdade, expressa na palavra Véritas, significa grosso modo, a convergência entre pensamento e realidade, ou seja, para que minha forma de pensar seja considerada verdadeira, ela precisa estar em conformidade com os fatos; este é um conceito basicamente epistemológico e de grande aplicação nas ciências naturais, no entanto, embora seja um conceito de grande utilidade prática, filósofos da epistemologia sugerem que ao transferir o valor verdade para a convergência de pensamento e realidade sem, no entanto, explicar como se dá esse processo na mente do próprio conhecedor, o conceito deixa de explicar a natureza do próprio “conhecedor” que permanece um mistério.

Para os gregos a verdade era expressa através da palavra Alétheia, a verdade como um contínuo desvelamento da realidade acessível à razão e ao pensamento. A concepção grega foi influenciada pelas ideias do filósofo Platão para quem a realidade substancial são as ideias que existem em um mundo arquetípico (o mundo das ideias) do qual o mundo dos objetos do conhecimento deriva como um pálido reflexo (ou mundo sensível). Alethéia é um conceito eminentemente ontológico que se refere à realidade essencial de todas as coisas, não apreensível aos sentidos, mas ao pensamento.

HPB escreveu em seu artigo “Spiritual Progress”: “em todas as épocas houve sábios que contemplaram o absoluto e, no entanto, podiam ensinar apenas verdades relativas. Pois ainda ninguém em nossa raça nascido de mulher mortal tem ou poderia ter divulgado a verdade total ou final a um homem, pois cada um de nós precisa descobrir esse conhecimento final em si mesmo. O maior adepto vivo pode revelar a Verdade Universal apenas na medida em que a mente a que se dirige pode assimilar e não mais(...)”. 
Ainda sobre a verdade, em outro trecho daquele artigo HPB diz: “Ainda assim, cada um de nós pode alcançar relativamente o Sol da Verdade, mesmo nesta terra, e assimilar seus raios mais quentes e diretos (...) No plano da espiritualidade, para alcançar o Sol da Verdade, devemos trabalhar com sinceridade para o desenvolvimento da natureza superior de nossa mente. Sabemos que paralisando dentro de nós os desejos da personalidade inferior, e assim amortecendo a voz da mente puramente fisiológica – aquela mente que depende e é inseparável de seu veículo, o cérebro orgânico – o homem animal- nós podemos abrir espaço para o espiritual; e uma vez despertos de seu estado latente, os sentidos e percepções mais elevados crescem em nós em proporção do desenvolvimento pari passu do homem divino”.

Destas citações depreende-se não só a existência de uma Verdade bem como de seu reflexo no plano condicionado da manifestação. As verdades relativas de que nos fala Blavatsky são aquelas observadas no plano da existência condicionada que, embora transitórias, são bastante reais para seres sencientes em seu próprio plano ao passo que a Verdade Absoluta encontra-se em outro nível de realidade, sendo a própria Realidade, que é nas palavras do Mandukya upanishad “impronunciável”. O posicionamento de Blavatsky não é, portanto, aquele do sofista que pretende dar ares de veracidade às suas próprias opiniões por meio de artifícios retóricos, mas o de que a Verdade se revela a nós, paulatinamente, à medida que nos fazemos dignos dela intelectual, moral e espiritualmente. Também nos assinala que existe um caminho a seguir caso seja de nosso desejo conhecer essa Verdade e ele passa por uma transformação da nossa natureza egóica através do desenvolvimento das virtudes solapando também qualquer possibilidade de relativismo moral.

No contexto da Sociedade Teosófica em que se propõe como uma das diretrizes fundamentais a liberdade de pensamento, a questão da verdade assume importância capital e precisa ser considerada tanto sob o aspecto epistemológico (veritas) quanto ontológico (aletheia). A liberdade de pensamento implica que não existem obstáculos institucionais e/ ou doutrinários para o pensamento ou sobre o que se pensar, no entanto, se é de nosso entendimento que há verdades (sejam elas absolutas ou relativas), somos forçados a concluir que em se buscando de forma sincera, honesta e metódica, nossos pensamentos terão que corresponder às realidades - interna ou externa- podendo ser expressa de acordo com a capacidade de apreensão e entendimento individuais, respeitando a verdade sob suas variadas apresentações.

É também forçoso reconhecer que em nossa busca, precisamos transformar nosso entendimento da Verdade, ainda que relativo, em prática (sabedoria), ou seja, a senda espiritual e a busca pela verdade também passam por um cultivo da Veracidade em um mundo de aparências, exigindo um contínuo estudo da nossa própria natureza interna e esforço no sentido de eliminar os mesquinhos vícios e desejos egóicos bem como de expressar o ideal da fraternidade através de nossas ações, evitando assim que nossa busca se transforme em mera curiosidade ou em um fútil exercício intelectual. Na vida cotidiana, não é possível conciliar o elevado ideal da fraternidade universal com ideias, sejam elas de qualquer ordem, que estejam em frontal desacordo com a proposição da unidade de toda a vida, evitando as armadilhas do ego que nos aprisiona em um estado de hipocrisia auto-indulgente.

Portanto, o Teosofista sincero e, ainda de uma maneira mais ampla, o genuíno buscador espiritual, tem um dever para com a verdade, devendo valorizá-la, restaurá-la e respeitá-la sob todas as suas variadas apresentações, ainda que parciais em nosso mundo de relatividade, não devendo, no entanto, transigir com o erro, o engodo e a falsidade mesmo e, principalmente, dentro dos meios teosóficos e espiritualistas sob o risco de expor ensinamentos profundos e filosóficos ao escárnio e ao descrédito geral. Em nossa busca pela verdade, devemos ser isentos de paixões e preferências pessoais e aplicar tanto a razão quanto a intuição para compreendermos as profundas verdades de nossa existência e viver de tal forma que nossas ações correspondam aos nossos valores, sendo amantes da verdade e verdadeiros em nosso viver.

Um comentário:

  1. amigo, toda sua prolixidade é a mais pura Alethéica Veritas Verdade!!!

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