segunda-feira, 30 de outubro de 2017

A visão filosófica de um Mahatma Budista sobre Deus

Carta de um Mahatma sobre Deus (ou, a visão de um budista sobre Deus)


[O texto mais coerente e filosófico que já li sobre o tema - Alaya]

 Copiada por A.P.S., 28  set. 1882, em Simla, Índia.


  1. “Nem a nossa filosofia, nem nós próprio acreditamos em um Deus, e muito menos em um Deus cujo pronome necessita de uma inicial maiúscula. Nossa filosofiase encaixa na definição de Hobbes. Ela é preeminentemente a ciência dos efeitos pelas causas e das causas por seus efeitos, e já que ela é também a ciência das coisas surgidas do primeiro princípio, segundo a definição de Francis Bacon, antes de admitir qualquer primeiro princípio devemos conhecê-lo, sem o que não temos o direito de admitir nem mesmo sua possibilidade.
  2. Foi lhe dito que nosso conhecimento estava limitado ao nosso sistema solar: portanto, como filósofos que desejam ser dignos do nome, não poderíamos negar nem afirmar a existência do que você qualificou como um ser supremo, onipotente, inteligente, de um tipo além dos limites do sistema solar.
  3. Mas embora tal existência não seja absolutamente impossível, a menos que a uniformidade da lei da natureza se rompa naqueles limites, nós sustentamos que é altamente improvável. Mesmo assim, rejeitamos de modo extremamente enfático a posição do agnosticismo neste sentido, e com relação ao sistema-solar. Nossa doutrina não conhece meios termos. Ela afirma ou nega, porque só ensina aquilo que sabe que é verdade. Portanto, nós negamos a Deus como filósofos e como budistas. Sabemos que há vidas planetárias e outras vidas espirituais e sabemos que em nosso sistema solar não existe coisa tal como Deus, seja pessoal ou impessoal. Parabrahm não é um Deus, mas a lei absoluta e imutável, e Ishwara é o efeito de Avidya e Maya, ignorância baseada na grande ilusão.
  4. A palavra “Deus” foi inventada para designar a causa desconhecida daqueles efeitos que o homem tem adorado ou temido sem entender, e já que nós alegamos que somos capazes de comprovar o que alegamos – isto é, que conhecemos aquela causa e outras causas – temos condições de sustentar que não há Deus ou Deuses atrás daqueles efeitos.
  5. A idéia de um Deus não é uma noção inata, mas adquirida, e nós só temos uma coisa em comum com as teologias – nós revelamos o infinito. Mas enquanto atribuímos causas materiais, naturais, sensíveis e conhecidas (por nós pelo menos) a todos os fenômenos que procedem do espaço, da duração e do movimento infinitos e ilimitados, os teístas atribuem a eles causas sobrenaturais, inteligíveis e desconhecidas.
  6. O Deus dos teólogos é simplesmente um poder imaginário, um bicho papão. Nossa principal meta é libertar a humanidade deste pesadelo, ensinar ao homem a virtude pelo bem da virtude, e ensiná-lo a caminhar pela vida confiando em si mesmo, ao invés de depender de uma muleta teológica que por eras incontestáveis foi a causa direta de quase toda miséria humana.
  7. Se as pessoas estiverem dispostas a aceitar como Deus nossa VIDA UNA, imutável e inconsciente em sua eternidade, poderão fazê-lo e assim manter mais um gigantesco equívoco de denominação. Mas então terão de dizer como Spinoza que não há e não podemos conceber qualquer substancia além de Deus, conforme aquele famoso filosofo diz em sua décima-quarta proposição: “praeter Deum neque dari neque concipi potest substantia” – e assim tornarem-se panteístas.
  8. Quem, exceto um teólogo formado no mistério e no mais absurdo sobrenaturalismo o de imaginar um ser auto-existente, necessariamente infinito e onipresente, FORA do universo manifestado que NÃO TEM FRONTEIRAS? A palavra infinito é apenas uma negativa que exclui a idéia de limites. É evidente que um ser independente e onipresente não pode estar limitado por nada que seja externo a ele; que não pode haver nada externo a ele – nem mesmo vácuo, portanto, onde haverá espaço para a matéria? Para aquele universo manifestado, mesmo que este último seja limitado? Se perguntarmos para os teístas se o Deus deles é vácuo, espaço ou matéria, eles responderão que não. E no entanto sustentam que o Deus deles penetra a matéria embora ele próprio não seja a matéria. Quando nós falamos da nossa Vida UNA, também dizemos que ela não só penetra, mas é a essência de cada átomo de matéria; e que, portanto, ela não apenas tem correspondência com a matéria, mas possui também todas as suas propriedades. Conseqüentemente, também é material e a própria matéria.
  9. Como poderia a inteligência proceder ou emanar da não-inteligência? “ - você insistia em perguntar no passado. “Como poderia uma humanidade inteligente ter evoluído a partir de um lei ou força cega, não-inteligente!” Mas um vez que raciocinamos nesta direção, eu posso perguntar por minha vez, como poderiam deficientes mentais congênitos, animais que não raciocinam e o resto da ‘criação’ ter sido criados ou haver evoluído a partir de uma Sabedoria Absoluta, se esta última é um ser pensante inteligente, o autor e governante do Universo? Como? “Deus fez o olho e não enxergará?” Deu fez o ouvido e não escutará?”.  De acordo com este modo de pensar eles teriam que admitir que, ao criar um deficiente mental, Deus é um deficiente mental; que aquele que fez tantos seres irracionais, tantos monstros físicos e morais, deve ser irracional...
  10. Nós não somos advaitas, escola não dualista da tradição dos Vedas que foi fundada por Sankarahcaria, mas nosso ensinamento com respeito à Vida Una é idêntico ao dos advaitas com relação a Parabrahma. E nenhum verdadeiro advaita treinado filosoficamente jamais se identificará com um agnóstico, porque sabe que ele é Parabrahma e idêntico em todos os aspectos à vida universal – o macrocosmo e o microcosmos, e sabe que não há Deus separado dele, nenhum criador, como nenhum ser. Tendo encontrado a gnosis, nós não podemos nos esquecer e transformar-nos em agnósticos.
  11. ... Se fôssemos admitir que até mesmo os mais altos Budas podem cair em alguma ilusão, então de fato não haveria realidade para nós. Se há um absurdo em negar aquilo que não conhecemos, é ainda mais absurdo atribuir a ele leis desconhecidas.
  12. Segundo a lógica, o “nada” é aquilo do qual tudo pode ser corretamente negado e do qual nada pode ser corretamente afirmado. No entanto, de acordo com teólogos, “Deus, o ser auto-existente, é extremamente simples, imutável, incorruptível; sem partes, sem figura, movimento, divisibilidade ou quaisquer outras propriedades como estas, que encontramos na matéria. Porque todas estas coisas implicam muito clara e necessariamente finitude em sua própria noção, e estão totalmente afastadas da infinidade completa”. Portanto, o Deus oferecido à adoração no século XIX perde toda qualidade sobre a qual a mente do homem seja capaz de ter qualquer julgamento. O que é isto, na verdade, além de um ser do qual eles não podem afirmar COISA ALGUMA que não seja negada instantaneamente?
  13.  A própria Bíblia deles, no Apocalipse , destrói todas as perfeições morais que eles empilham sobre esse ‘Deus’, a menos, de fato, que qualifiquem como perfeições aquelas qualidades que a razão e o senso comum de qualquer homem comum chamam de vícios odiosos e maldade brutal. Quem lê as nossas escrituras budistas, as escritas para as massas supersticiosas, não encontrará nelas um DEMÔNIO tão vingativo, injusto e cruel quanto o tirano celestial ao qual os cristão atribuem perfeições negada em cada página da sua Bíblia. A Teológia criou o Deus dela apenas para destruí-lo pedaço por pedaço. A Igreja de vocês é o Saturno do mito, que tem filhos apenas para devorá-los.
  14. Negamos a existência de um Deus pensante, consciente, com base em que um tal Deus deveria ser condicionado, limitado, sujeito a mudança, e portanto, não infinito. E se ele for descrito para nós como um ser eterno, imutável e infepedente, sem partícula alguma de matéria em si, então responderemos que ele não é um ser, mas um princípio imutavel e cego, uma lei. Rejeitamos a proposição absurda de que pode haver, mesmo em universo ilimitado e eterno, duas existências eternas e onipresentes.
  15. Quanto a Deus, já que ninguém jamais e em tempo algum o viu – a menos que ele seja a própria essência da Natureza, sua energia e seu movimento, não podemos vê-lo como eterno, infinito ou auto-existente. Nós nos recusamos a admitir a existência de um ser do qual nada se sabe; porque não há espaço para ele na presença daquela matéria cujas qualidades nós conhecemos bem, porque se ele é apenas uma parte daquela matéria, seria ridículo sustentar que ele movimenta e governa aquilo de que ele é apenas uma parte dependente e porque se nos dizem que Deus é um puro espírito auto-existente e independente da matéria – uma deidade extra cósmica - nós respondemos que mesmo admitindo a possibilidade de tal impossibilidade, isto é, a existência dele, nós sustentaríamos que um espírito puramente imaterial não pode ser um governante consciente e inteligente, nem pode ter nenhum dos atributos atribuídos a ele pela teologia, assim, um tal Deus se tornaria novamente um força cega natural.
  16. A inteligência torna necessário o pensamento; para pensar alguém deve ter idéias; idéias supõem sentidos, que são físicos e materiais, como pode qualquer coisa material pertencer ao puro espírito? Se for feita a objeção de que o pensamento não pode ser uma propriedade da matéria, nos perguntaremos: por quê?
  17. Nós não inclinamos nossas cabeças até o pó do chão diante do mistério da mente – porque já o resolvemos eras atrás. Rejeitando com desprezo a teoria teísta, rejeitamos ao mesmo tempo a teoria do autômato, que ensina que os estados de consciência são produzidos pela disposição das moléculas do cérebro. Então, em que acreditamos? Acreditamos na matéria como natureza visível e produtora de causa e na matéria em sua invisibilidade, com seu movimento incessante que é a sua VIDA.
  18. Nossas idéias a respeito do mal são que o mal não tem existência por si mesmo e é apenas a ausência do bem; existe apenas para aquele que é transformado em sua vítima. Surge de duas causas e, tanto quanto o bem, não é uma causa independente da natureza. A natureza é destituída de bondade ou maldade, apenas segue leis imutáveis quando dá vida ou morte, cria ou destrói. A natureza tem um antídoto para cada veneno e suas leis possuem uma recompensa para cada sofrimento.
  19.  O verdadeiro mal surge da inteligência humana e sua origem está inteiramente no homem que raciocina e se dissocia da Natureza. A humanidade, portanto, é a verdadeira fonte do mal. O mal é produto do egoísmo e da ganância, gerados pela ignorância. Pense profundamente e descobrirá que, com a exceção da morte – que não é um mal mas uma lei necessária – e de acidentes, que sempre terão sua recompensa em uma vida futura – a origem de cada mal está na ação humana, no homem, cuja inteligência faz dele o único agente livre da natureza.
  20. Não é a Natureza que cria doenças, mas o homem. O destino do homem na economia da natureza é ter uma morte natural provocada pela velhice; salvo acidentes, nenhum homem selvagem ou animal livre morrem devido a doenças. Comida, bebida, relações sexuais, são necessidade naturais da vida; no entanto, o excesso delas traz doença, miséria, sofrimento mental e físico; e estes últimos são transmitidos como os maiores males para as gerações futuras, os descendentes dos culpados.
  21. A ambição, o desejo de assegurar a felicidade e conforto para aqueles que amamos através da obtenção de honras e riquezas são sentimentos naturais, mas quando  eles transformam o homem num tirano cruel e ambicioso, um miserável, um egoísta, trazem miséria indescritível para os que estão ao redor dele; e para nações tanto quanto para indivíduos. Tudo isso então – comida, riqueza, ambição e outras mil coisas que deixamos de mencionar – se torna fonte e causa do mal, seja por causa de sua abundância ou devido à sua ausência. Torne-se um glutão, um devasso, um tirano, e você se transforma em um gerador de doenãs, de sofrimento e miséria humanos. Deixe de lado tudo isso e você passa fome, é desprezado como um ninguém, e a maior parto do rebanho, os seus semelhantes, transforma você em um sofredor a vida toda. Portanto, não é a natureza nem uma divindade imaginária que devem ser acusadas, mas a natureza humana transformada em algo mau pelo egoísmo. Pense bem sobre estas poucas palavras; identifique a causa de cada mal em que voocê pode pensar e localize a sua origem e terá resolvido uma terça parte do problema do mal.
  22. E agora, depois de deixar de lado, como é devido, os males que são naturais e não podem ser evitados – e eles são tão poucos que eu desafio todo o conjunto dos metafísicos ocidentais a qualificá-los como males ou atribuir-lhes uma causa independente – direi a você qual é a maior, a principal causa de cerca de dois terços dos males que perseguem a humanidade desde que esta causa se tornou um poder. É a casta sacerdotal, o clearo e as igrejas; é nestas ilusões que o homem vê como sagradas, que ele deve procurar a fonte daquele sem-número de males, que é a grande maldição da humanidade e que quase tomina totalmente o gênero humano.
  23. A ignorância criou Deuses e a astúcia aproveitou a oportunidade. Além disso, um sentimento constante de dependência a uma Divindade vista como a única fonte de poder faz com que um homem perca toda autoconfiança e o impulso para a atividade e a iniciativa. É um pecado atribuir a um Deus a tarefa de libertar as pessoas de si mesmas. Veja a Índia, veja a cristandade, o Islamismo, o Judaísmo e o fetichismo. Foi a impostura do clero que fez com que estes deuses passassem a ser tão terríveis para o homem; é a religião que o transforma no beato egoísta e fanático que odeia toda a humanidade fora de sua própria seita, sem torná-lo em nada melhor ou mais ético por isso. É a crença em Deus e Deuses que faz dois terços da humanidade escravos de um punhado daqueles que os enganam com o falso pretexto de salvá-los. O homem não está sempre pronto a cometer qualquer tipo de maldade se lhe disserem que seu Deus exige o crime- vítima voluntária de um Deus ilusório, escravo abjeto de seus ministros astuciosos? Os camponeses passarão fome e verão suas famílias famintas e sem roupa para alimentar e vestir seu padre e seu papa. Durante dois mil anos a Índia gemeu sob o peso das castas, com os brâmanes engordando só a si mesmos. E hoje os seguidores do Cristo e os de Maomé - que foram seres iluminados e tiveram sua mensagem distorcida pela ignorância dos homens - estão cortando as gargantas uns dos outros em nome de seus respectivos mitos. A soma da miséria humana nunca será diminuída até aquele dia em que grande parte da humanidade destruir, em nome da Verdade e da Compaixão, os altares de seus falsos deuses.
  24. Se for feita a objeção de que nós também temos templos, de que nós também temos sacerdotes e que nossos lamas também vivem da caridade... que se saiba que os objetos mencionados acima só têm o nome em comum com seus equivalentes ocidentais. Em nossos templos não há um deus ou deuses adorados, apenas o respeito à memória do mais iluminado dos homens. Se nossos lamas, para honrar a fraternidade dos Bhikkhus, estabelecida pessoalmente pelo nosso abençoado mestre, saem para serem alimentados pelos leigos, este últimos, em números que vão de 5 a 25.000, são alimentados e cuidados pela Sangha (a fraternidade de monges lamáicos), e a lamaseria atende as necessidades dos pobres, dos doentes e dos aflitos. Nossos lamas aceitam comida, nunca dinheiro, e em nossos templos a origem do mal é explicada e transmitida ao povo. Lá são ensinadas as quatro nobres verdades e a cadeia de causação interdependente (nidanas), que lhes dá uma solução para o problema da origem do sofrimento e sua destruição.
  25. Leia o Mahavagga e tente compreender, não com a mente ocidental preconceituosa, mas com o espírito de intuição e de verdade o que o Buda Iluminado diz no 1º Khandhaka. Permita que eu traduza para você.
  26. “Na época em que o abençoado Buda estava em Uruvela, às Margens do rio Neranjara, quando descansava sob a árvore da sabedoria Bodhi, mantendo sua mente fixa na cadeia de causação (nidanas) ele falou assim: ‘da Ignorância (avidya) surgem os samskharas (germes e tendências karmicas estabelecidos em vidas anteriores fruto de impressões deixadas na mente pelas ações e circunstâncias)... os samskharas de natureza tríplice – produtos do corpo, da fala e do pensamento. Dos samskharas surge consciência, da consciência surgem nome e forma, deles surgem as seis regiões dos sentidos; deste surge o contato, deste a sensação; desta surge a ânsia e desejo, e disso o apego, a existência, o nascimento, a velhice, a morte, a aflição, a lamentação, o sofrimento, o desânimo e o desespero. No sentido inverso, pela destruição da Ignorância, raiz do sofrimento, os samskharas são destruídos, e a consciência deles, nome e forma, as seis regiões, o contato, a sensação, o apego (egoísmo), a existência, nascimento, velhice, morte, o sofrimento são destruídos. Assim é a cessação de toda essa massa de sofrimento.”
  27. Sabendo disso, o Ser Abençoado fez esta afirmação solene:
  28. “Quando a natureza real das coisas se torna clara para o Bhikshu que medita, então suas dúvidas desaparecem, já que ele compreendeu qual é aquela natureza e qual a sua causa. Da ignorância surgem todos os males. Do conhecimento interior (que os gregos chamam Gnosis) vêm a cessação desta massa de infelicidade, e então o brâmane que medita ergue-se dispersando as hostes de Mara como o sol ilumina o céu.”
  29. Meditação aqui significa as qualidade dos sidhis (que não são sobrenaturais), ou a condição de Arhat nos seus mais altos poderes espirituais."
Esta carta foi escrita no século XIX por um oriental, representante do budismo Mahayana/Vajrayana, que conheceu o ocidente e neste fez um amigo. Seu amigo ocidental lhe questionou sobre a questão de Deus e o Bodhisatva respondeu -  em “Cartas dos Mahatmas para A.P.Sinnet”

Um comentário:

  1. Oi Alaya. Bom trabalho. Muito bom resgatar este texto, escrito por alguém que sabe mais (sabe o que está afirmando, além das meras opiniões). Sugiro concertar aquilo que provavelmente foi um erro de digitação: no parágrafo nº 5 (conforme sua numeração neste post), onde há "inteligíveis", deveria ser "ininteligíveis" (conforme a carta de nº 88, página 54, Vol. 2, Ed. Teosófica, 2001). Sabendo que Manas é um dos princípios presentes no homem, essa pequena correção muda algumas coisas. Bela iniciativa esta a sua aqui do blog! Vamos em frente.

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