segunda-feira, 13 de maio de 2019

Ganância espiritual e querer dominar tudo sem ser profundo em nada

Sobre "Gula" espiritual e superficialidade
*Por Bruno Carlucci


Há muito tenho evitado postar sobre espiritualidade em redes sociais, pois aqui as coisas se banalizam ou acabam em discussões infrutíferas. Não tenho necessidade de convencer ninguém, nem estou disposto a ser convencido por ninguém. Nem esse texto é uma indireta específica direcionada a alguém. É só um desabafo/reflexão mesmo a que cheguei esses dias: Uma das coisas que mais me preocupa na tentativa de estabelecer uma rotina de estudos e de vida coerente com a busca espiritual são a dispersão e a gula. Tempo e foco são um problema. Não chegamos a lugar algum na vida sem foco, sem metas claras e temos que usar o nosso tempo para isso, claro, tudo amparado por uma reta motivação, uma ética adequada. Ensina o budismo que tempo é uma das coisas mais preciosas que temos, pois nunca sabemos o dia de amanhã.
Mesmo que nenhuma tragédia aconteça, pode vir um novo emprego, um filho, um casamento, um compromisso da vida diária que reduz o tempo que temos para nos dedicar ao estudo e à prática. Percebo uma "culpa" teosófica em muita gente e em grupos que sentem que precisam estudar uma legião de tradições espirituais ao mesmo tempo e o foco se perde. A culpa é alimentada por uma gula, porque de fato há muitas tradições idôneas que precisam ser estudadas, mas com a gula se busca abraçar tudo e a dispersão e a confusão só aumentam. Acabamos com um exército de doutores em tudo e em nada ao mesmo tempo.
As pessoas se apegam aos conceitos, se apegam à imagem de "ser alguém que estuda muitas tradições e entende de todas elas" e daí vem um ciclo vicioso, em que as pessoas estão sempre pulando de galho em galho e voltando para o galho anterior, reciclando as mesmas palestras, a mesma verborragia de conceitos e bate-boca, porque já são "doutoras" e já dominam tudo, mesmo que na verdade nem tenham uma ligação, um vínculo com aquela tradição, mas em sua dispersão se enganam e se convencem de que se identificam com tudo.
Ou pior, a gula gera vaidade e a vaidade faz com que a pessoa queira falar até mesmo do que não estudou, ou do que só estudou "superficialmente" e daí vem o plágio, começa-se a roubar a experiência, a fala das outros. O noviço (às vezes nem isso) quer se mostrar tão doutor quanto o Lama. A vaidade gera a mentira, a pessoa quer ser admirada, adulada, gosta de sair contando por aí acerca dos elogios que recebeu, gosta quando a comparam e dizem que sua palestra foi melhor que a do fulano, que o seu texto está impecável, que a sua tradução não tem erros, seus olhos brilham quando alguém lhe promete um cargo ou uma posição de destaque no grupo.
A pessoa passa a se achar "o senhor do primeiro raio", a raposa que lidera as ovelhas, na ânsia de compensar algum tipo de carência ou frustração mal resolvida na vida pessoal ou profissional, ela começa a competir com os outros para ser o centro das atenções e derrotar os seus rivais. Então, inconscientemente e, cada vez mais, conscientemente a pessoa se volta contra aqueles que a ensinaram, contra seus colegas, contra as inclinações naturais de sua própria alma e abrem-se as portas, para a pessoa que é doutora de tudo, "senhora do primeiro raio", projeto de Avatar e salvador da humanidade, cheia de gula e de raiva, arrogância e megalomania, a se dispersar ainda mais e começar a espalhar ensinamentos distorcidos.
Começa com um pequeno desvio aqui e ali, na ânsia de se mostrar autoridade daquilo que ela não domina, e acaba por, nos casos mais graves, a explorar caminhos não-idôneos e experimentar toda a severidade com que o Senhor do Tempo lhe presenteará em resposta. Pois este é um deus que não perdoa. E mais uma vida se vai, mais problemas para a próxima. Assim a roda gira.
 

Se a sua alma não grita, se o seu coração não chora por um determinado assunto, por uma determinada tradição espiritual, não considere a si mesmo especialista ou interessado em algo que não é, pois curiosidade não é interesse. Não banalize o que é sagrado. Não engane os outros, nem a si mesmo. 
Se não há reta motivação, ética, coerência mínima com que se pretende ensinar, silencie. Não prometa o que não pode oferecer. Vivemos em tempos de muitos pretensos especialistas e pouco estudo, muitos falantes e poucos ouvintes, muita dispersão e barulho, mas pouca reflexão e silêncio. 

Outra coisa que tenho pensando em conversas com amigos: claro que na história houve contatos entre diferentes tradições, mas os Iniciados de cada tradição se focaram e se especializaram naquela tradição a que estavam mais vinculados e, certamente, não por preconceito, mas porque muito dificilmente alguém consegue se aprofundar igualmente em vários caminhos ao mesmo tempo. Não vejo nada de errado em estudar mais de uma tradição (até porque eu mesmo faço isso), até para comparar e aprender coisas que podem ser úteis para a aquela tradição principal, aquela que mais grita no coração. Claro que podemos nos identificar com mais de uma, afinal, estamos aí renascendo a todo século (não, não acredito literalmente no papo de 1000 anos de "devachan", sinto muito), mas aí temos que ser sinceros conosco e refletir sobre o que, na vida presente, vibra mais em nossa mente, em nossa alma.
A maior parte dos casos de pessoas que vejo dizerem se identificar igualmente com todas ou estão confusas e se desviando de um trabalho que poderiam fazer com aquela que lhes traz mais clareza ou usando a curiosidade como rota de fuga para não terem de se aprofundar num determinado caminho. Claro, conheço exceções, mas são casos de pessoas realmente excepcionais que saem do universalismo superficial e têm um discernimento que poucos têm, além da "sorte" de ter muito tempo disponível e disciplina para usá-lo.

HPB diz num texto que muitos iniciados têm um intelecto abaixo da média, pois o mais importante no caminho é a pureza de princípios, a sinceridade na busca, uma boa intuição e discernimento. Claro que desenvolver e usar o intelecto é útil e importante, mas não dissociado desses outros pontos.

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