Advaita Vedanta
Origem
A Vedanta é uma das escolas
tradicionais da filosofia da Índia, chamadas Darsanas. O iniciador dessa filosofia
foi Gaudapada, que nos brinda com o Mandukya-karika,
um comentário ao Mandukya Upanishad. Gaudapada tornou-se o instrutor de Sankara
quando este ainda era bastante novo. E Sankara foi o grande expositor da
Vedanta, tendo morrido bastante jovem, na idade de 30 ou 32 anos.
Estabelecer a origem histórica da
Vedanta é um desafio à parte. É sempre difícil determinar com precisão a data
de qualquer evento particular que tenha ocorrido na história da Índia, pois os
indianos, diferente de nós, não têm uma forte tradição historiográfica, e
parecem pouco preocupados em estabelecer no tempo os nomes que marcaram sua época.
Tal dificuldade é aumentada pela especulação de orientalistas cujo trabalho
tende a confundir mais ainda, devido a seu conhecimento parcial da
filosofia/religião hindu. Muitos autores atuais apenas repetem os estudos
estabelecidos pela primeira vez no ocidente por parte destes orientalistas que
viveram no século XIX. Assim, os possíveis erros continuam a serem repetidos
por falta de maiores investigações, tomando por certas as datas previamente
estabelecidas por outros.
É importante o estudante ter para si
que no que concerne às datas indianas, nada é 100% seguro de se confiar. Muitos
dos seguidores de Sankarcharya, os chamados Mathadhipatis, importantes na
difusão do ensinamento Advaita, foram chamados pelo nome de Sankara, e por
isso, referências a eles podem facilmente serem confundidas como sendo
referências ao primeiro Sankara.
Enquanto Auguste Barth, em seu livro
“The Religions of India”, coloca Sankara no século VIII d.C., sem informar como
chegou a esta conclusão; outros autores afirmam que há muitas tradições que o
colocam até mesmo antes da era cristã, corroborando as afirmativas de alguns
indianos, como o Pandit vedantino T. Subba Row que afirmou que o gramático
Panini cita Sankara, e, portanto, Sankara deveria ter vivido no século VI a.C.
Há quem afirme que Sankara foi discípulo de Govindapa e que este seria um dos
nomes de Patanjali.
O que deve ficar claro para nós é que
o período exato em que Sankara floreceu não pode ser facilimente determinado,
pois mesmo aqueles que pensam que ele viveu na era cristã, discordam entre si,
gerando um período de até 400 anos de dúvida. O que se pode ter certeza é que a
Vedanta surge após os Upanishads, geralmente datados entre o século nono e
sexto antes da era cristã.
A palavra Vedanta significa “o fim
dos Vedas”, no sentido de “alvo”, “objetivo”. Ela é uma decorrência da tradição
védica. Considera-se que os Vedas vieram de uma tradição oral, trazida pelos
arianos, e que foram redigidos apenas muito tempo depois. Não se sabe quão
antigos são esses ensinamentos, mas alguns datam suas últimas edições escritas
em torno do século VI a.C. Também podemos entender literalmetne como ‘fim dos
vedas’, pois a Vedanta está principalmente baseada nos Upanishads, que aparecem
no final de cada volume dos quatro Vedas.
Os Vedas são divididos em quatro: Rigveda, Yajurveda, Samaveda, Atarvaveda
(sendo este o mais novo deles). Seus conteúdos variam entre mitos, rituais, mantras,
poemas e cânticos, meditações, cosmologia e filosofia. Os Upanishads, que
tratam de questões filosóficas/metafísicas são extensões dos Vedas. São citados
mais de 180 Upanishads, porém 12 ficaram famosos, justamente por terem sido
comentados por Sankara. Estes são: Isa,
Prasna, Taittiriya, Brihadarannyaka, Kena, Mundaka, Aitereya, Svestasvatara,
Khata, Mandukya, Chandogya, Kausitaki. O termo ‘upanishad’ significa
“sentar-se aos pés do mestre”. Disso podemos inferir uma referência a uma
tradição oral.
Patanjali, o sábio yogue autor dos Sutra Yogas, aborda os vários tipos de
caminhos da yoga. Yoga significa união. Nada mais é que a união de Atman em nós
com Brahmam supremo da Vedanta. Essas ‘divisões’ da yoga são aspectos dessa
união. Nos Vedas temos ensinamentos referentes a aspectos de ação no mundo e
liturgias (karma yoga), de devoção e
entrega interna ao guru (bakti yoga)
e outros. A hatta yoga, que é o que
comunmente entende-se por yoga no ocidente, é apenas o aspecto de exercícios
físicos, respirações e práticas internas. Mas a yoga também possui um lado
filosófico, a jnana yoga, que é
justamente a temática abordada nos Upanishads.
A yoga que desperta a sabedoria.
Jnana em sânscrito possui a
mesma raiz que gnosis, que:
[...] não é o conhecimento racional e menos ainda um
acúmulo de informação. A língua grega faz distinção entre o conhecimento
teórico e o conhecimento obtido por meio da experiência direta. Este último é
gnose. Elaine Pagels, em seu livro Os
evangelhos gnósticos, indica que no sentido em que os próprios gnósticos
usam o termo, ele pode ser traduzido como insight, pois gnose envolve um
processo intuitivo que abarca tanto o conhecimento de si próprio como o
conhecimento das realidades últimas, divinas.[1]
A definição de gnosis encaixa perfeitamente na definição de
jnana. É este conhecimento, de si e das realidades últimas, do Atman em nós,
que é a busca do praticante da jnana yoga
ou da Vedanta.
A Vedanta difundida por Gaudapada e
Sankara é chamada Advaita (não-dualista), posteriormente surgiram a
Visistadvaita (não-dualista qualificada), cujo principal representante é
Ramanuja, e a Vedanta Dvaita (dualista), representada por Madhva. A Advaita
permanece soberana, e por isso será nosso enfoque. A Vedanta baseia-se nos
Upanishads, no Bhagavad-Gita e nos Brahma-Sutras de badarayna (também chamado
Vyasa), estes são os principais textos sobre os quais Sankara estabeleceu sua
filosofia.
Nirguna Brahman
Uma das principais preocupações do
ensinamento vedantino é a questão de Brahman (também chamado de Parabrahman em
alguns textos). Brahman é a Lei Absoluta, imutável. No Katha Upanishad é dito
que é “a causa sem causa. Apenas Brashman é, nada mais é”. Já o Kena Upanishad
estabelece que “Brahman não é o ser que é adorado pelos homens” e, portanto, não
pode ser visto como uma divindade.
Para o Prasna Upanishad, Brahman é
OM, o som universal, a vibração primeira, que vibra no coração de todos os
seres. “O universo surgiu de Brahman. Em Brahman ele vive e tem sua existência.
Tudo é Brahman” ( Chandogya Upanishad). Quando os hindus entoam o mantra OM (ou
AUM), é uma tentativa de conectar-se a Brahman. O Taittitiya Upanishad ensina
que “deve-se meditar sobre Brahman como a fonte de todo pensamento, vida e
ação. Ele é o esplendor na riqueza, é tudo. É auto-existente”.
Brahman é não dual, é o Um sem
segundo. “É sem causa, sem efeito, sem interior, sem exterior” ( Brihadaranyaka
Upanishad). Na Vedanta Brahman é chamado de Nirguna Brahman, a realidade
última, o absoluto, pois não pode ser qualificado, é indiferenciado, sem
atributos. Nirguna significa “sem gunas”, são as gunas que compõe o mundo
fenomênico. O radical Nir é o mesmo nir da palavra Nirvana, que significa cessação.
Essa visão
sobre Brahman é bastante semelhante à teologia negativa, como a expressa por
Pseudo Dionísio por exemplo. Também encontramos ecos desse ‘incognoscível’ no
Uno de Plotino, que só pode ser “conhecido” através da contemplação, pois é
inefável, indizível. Já no gnosticismo temos a noção de um “Espírito
Invisível”, ao qual olho algum é capaz de olhar. No Apócrifo de João (Biblioteca de Nag Hammadi) encontramos a passagem
“O Uno é uma unidade sobre a qual nada rege”. Nesta obra ele é qualificado como
pleno, ilimitável, insondável, indescritível etc. Também podemos nos lembrar do
Tao Te King, onde Lao Tsé afirma que o TAO que pode ser dito não é o grande TAO
(pois este é inefável).
Ainda encontramos
similitudes na idéia cabalística de Ain Soph, o Todo, que é autosuficiente e
não pode ser limitado pela existência. O Ain Soph é o Não-ser (talvez
semelhante ao de Parmênides), o princípio não manifestado e incompreensível de
onde emanam os Sephiroth. Por mais impressionante que possa parecer, se
olharmos para alguns textos islâmicos com olhos filosóficos, veremos novamente
esse “primeiro princípio”. No “Tratado sobre a Unidade”, Ibn Arabi se refere a
Allah como “ o primeiro sem anterioridade, o ultimo sem posteridade. Ele é
visível sem exteriorizar-se. Ele é oculto sem esconder-se. Não há nada
anterior.” E assim como os vedantinos dizem que não devemos confundir Brahman
com Ishvara, Ibn Arabi diz: “é necessário compreender este Mistério para não
cair no erro dos que crêem em encarnações de divindade.”
Claro, não
devemos forçar comparações de maneira rasa e superficial, igualando sistemas diferentes,
mas ainda assim, parecem se referir de forma semelhante a seus princípios
primeiros. Talvez a compreensão dessa realidade última como permeando todas as
tradições nos ajude a compreender que Sankara não falava de Deus ao referir-se
a Brahman (ou de um deus específico de seu sistema filosófico), mas falava de Paramarthika, esse absoluto, que se for
de fato absoluto, o é para toda a humanidade.
Sankara diz
que o universo é uma sobreposição a Brahman. Brahman permanece eternamente
infinito e imutável. Não está transformado neste universo. Ele simplesmente
aparece a nós como esse universo, em nossa ignorância. Um Deus que cria um
mundo limita a si mesmo pelo próprio ato da criação, ao criar, deixa de ser
Uno, deixa de ser infinito. Ao mesmo tempo não se pode dizer que Sankara é
monista, pois Brahman é um ‘não-um’, mas também é um ‘não-dois’.
Em sua obra
“Vivekachudamani”, Sankara afirma que “Brahman é supremo. É a realidade – o um
sem segundo. É pura consiência, livre de qualquer mácula. É a própria serenidade.
Não tem começo nem fim. Não conhece mudanças. Ele é imensurável, sem princípio,
sem fim, supremo em sua glória.”
Sirguna Brahman - ou
Ishvara - e o véu de Maya
Brahman, este absoluto e
incognoscível Uno, sem atributos, isto é, Nirguna, manifesta-se em Sirguna
Brahman, com atributos, condicionado. Do absoluto Paramarthika surge o relativo Vyavaharika.
Sirguna (ou
Saguna) Brahman é Ishvara, o ‘Senhor’. Ishavara é o lar de toda a existência
finita, é a causa do mundo. A oniciência e onipotência de Ishvara dependem da
limitação. Pode ser entendido como Deus, como a última realidade empírica (e
não a realidade absoluta). Este ‘Deus’ existe somente em relação ao universo,
ao mundo como verdade convencional. Ainda assim, Ishavara mantém certa unidade,
que não é comprometida pela pluralidade do mundo. Como o Nous de Plotino, que não é o Uno, mas não é múltiplo.
Brahman, a
realidade absoluta, é incapaz de ação ou mudança temporal. Por isso, somente
Ishavara, que é Brahman unido a Maya,
pode ser um princípio criativo. Para Sankara não devemos entender literalmente
as histórias de criação do mundo. Até por que a própria manifestação é
aparente. Não há de fato uma criação ou um criador, a única realidade é
Brahman. Este só aparece como Ishvara quando visto pela relativa ignorância de Maya, o véu.
Ishvara é o efeito de Avidya (a ignorância que não vê a
realidade) e Maya, é a ignorância
baseada na grande ilusão. Para Swami Vivekananda, “o Deus pessoal é a leitura
do Impessoal pela mente humana”. Na Vedanta Advaita Ishvara tem pouca
imporância, pois ele é também um fenômeno.
O conceito advaita de Maya é o mesmo Prakriti da Darsana Samkhya.
A divindade é Saguna, isto é, condicionado pelas trigunas de Prakriti: Tamas, Rajas e Sattva. As trigunas
compõem o véu de Maya, formam a
“camada inferior”, que não possui existência própria.
Tamas
representa a energia densa, material, tudo que é compacto, pesado. Rajas representa os desejos, vicios,
volições ativas e Sattva tudo que é
harmonico, sutil e puro. É dito que enquanto Tamas e Rajas nos prendem
mais em Maya, Sattva nos ajuda a nos
libertarmo-nos. Tais gunas se manifestam em todos os fenômenos do mundo, e é
devido a este entendimento que os antigos yogues não consumiam alimentos que
eles caracterizavam como “tamásicos” ou “rajásicos”, dando preferência aos
“sátvicos”, isto é, graos, frutas, vegetais.
Para o oriental não existe a
dicotomia corpo e mente, o corpo é uma expressão material de aspectos que
também são mente-espírito. Por isso a busca da libertação do samsara, isto é,
da teia de Maya condicionada por avidya, era feita também através de
práticas físicas e até escolhas detalhadas de alimentação, tudo para se
aproximar cada vez mais de Sattva.
Assim, de Brahman, o absoluto
incognocível, sem atributos – Nirguna, surge Saguna Brahman, Ishvara, que unido
a Maya (com suas três gunas) gera o
mundo manifesto, da multiplicidade. Quando Ishvara contempla e tem uma vontade,
é através dessa vontade que Prakriti
é colocada em atividade, e aparece o mundo da pluralidade.
Este mundo é como um truque de
mágica, o mágico não é afetado por seus próprios truques. Da mesma forma, o
supremo não é afetado pelo maya do samsara. O mundo é vikalpa e não vastu, isto
é, é uma construção mental e não um objeto em si.
Para ilustrar essa questão uma imagem
muito usada na Vedanta é a da cobra e da corda. A Vedanta não é niilista, o
mundo de fato existe, mas existe de forma condicionada, relativa. E o modo como
o percebemos e absolutizamos seus conceitos nos faz cair em erro. Como uma corda
que alguem toca no escuro; a pessoa pode sentir medo achando que é uma cobra, o
medo será real, assim como a corda, mas a noção de corda é ilusória,
condicionada pela mente, e por isso, com o ascender da luz – o despertar da
sabedoria – percebe-se a realidade da cobra como sendo apenas uma corda.
No âmbito do Absoluto, não existe bem
nem mal, pois so há unidade. “A criação não é boa nem má, ela é o que é” dizia
Ramana Maharishi. É a mente humana que coloca constructos na criação, vendo as
coisas a partir de seu próprio ângulo, ignorando a transitoriedade, e
absolutizando conceitos. Uma mente apegada a um eu ilusório que lhe parece
permanente é como alguém que vê a realidade com um óculos com lente colorida,
todo o mundo lhe parecerá diferente do que de fato o é.
De fato
podemos dizer que os objetos externos existem de certa forma, afinal, são
percebidos por nós. O que não corresponde à realidade última é a cognição que
temos deles. O grande erro reside também na absolutização dos conceitos, no
“isto é isto”, ignorando tanto o véu de maya, quanto sua caracteristica de
transitoriedade. A aparência de mundo é e não é. No estado de ignorância o
mundo é vivenciado e existe tal como parece, mas no estado de iluminaçã ele
cessa de existir.
Isso nos
lembra o conceito de interdependência e impermanência, ensinamentos
fundamentais dentro do budismo. Por serem inderdependentes, os fenômenos só
existem quando em relação a algo, por isso chamamos realidade relativa, samvritisatya.
Para a Vedanta , o mal não é uma realidade, pois o mal implica na
existencia do bem. Assim, sendo dualidade, só existe enquanto existência
condicionada. A única realidade é Brahman, o um sem segundo. Só se pode
considerar o problema do mal no nível de Ishvara.
Sendo assim,
pode-se criar um paralelo onde Brahman representa a sabedoria, a libertação, e
Ishvara representa a ignorância e a prisão.
Atman e Avidya
Quando Ishvara, junto com Maya e suas
três gunas, “cria” o mundo manifesto, cria-se também a “ilusão de realidade”.
Sankara identifica a experiência no mundo como um sonho do qual devemos
despertar.
De modo
análogo à Alma do Mundo em Plotino, da qual surgem as almas, na Vedanta temos a
idéia de Atman. Atman é a centelha de Brahman em cada um de nós, como a gota do
oceano, que ao retornar para o oceano, torna-se ele próprio. Atman não é uma
individualidade em si, pois é o reflexo de Brahman em nós. É a unidade em nós.
A pessoa que
possui esse Atman é chamado Jiva. Erroneamente muitos chamam o Jiva de “Atman
individual”, porém isso seria um equívoco de denominação. É dito que o Jiva é
uma conglomeração de Atman enclausurado em um corpo sutil, com os pranas, o karma, manas (mente), e antakarana (fio
condutor que leva o entendimento do inferior ao superior). Ele, o Jiva, é a
consciência condicionada por avidya. O
Jiva falha em conhecer a relatividade do mundo dual, mas quando dissolve o ‘eu’
e o ‘meu’, seu karma cessa, jnana desperta, e surge a libertação, a
união do Atman com Brahman, também chamada moksha.
Isto é, o principal obstáculo é a falsa
identificação do eu. Assim como no budismo Mahayana, a Vedanta entende que o
que nos mantém presos nesta realidade aparente, é avidya. Geralmente traduzida por ignorância, avidya literalmente significa ‘não-visão’.
Avidya será a causa central da não libertação.
No budismo ela é a segunda nobre verdade, a causa do sofrimento. A partir dela
surgem os kleshas (emoções aflitivas,
ou vícios), principalmente a dupla “apego/aversão”. A idéia central por trás de avidya é a noção que geramos de sermos
um ‘eu’ individual, separado, fixo, que não compreende a realidade tal qual ela
é. Esse senso de eu, de individualidade, é chamado ahamkara, que ja é por si só uma visão errônea.
Para a
Vedanta tudo é transitoriedade, portanto não há sentido nenhum no apego. Tudo que
é transitório é irreal, a única realidade é Brahman/Atman, que são Unos. Sendo
tudo transitório, a idéia que nós chamamos de ‘renascimento’ é abordada pela
Vedanta. O ensinamento novamente é muito semelhante ao do budismo Mahayana,
estaríamos presos em uma roda de renascimento compulsório, condicionados por
avidya, e enquanto não desenvolvermos vairaga, o desapego, continuaremos a
renascer.
Tudo que
foge da harmonia plena, da ressonância com Brahman, gera karma, este karma,
seja positivo ou negativo, compele a continuarmos presos, pois nosso Atman,
unido a Brahman, torna-se uno, portanto não poderia gerar nenhum tipo de karma
‘pessoal’, sendo assim quem gera karma é o Jiva.
A chave para
a libertação é janana, a sabedoria que compreende a realidade, que desvela o
Atman e o Une a Brahman, que retira a poeira do espelho de nosso ser e o faz
refletir a luz do absoluto. Havendo jnana não é mais possivel a ignorância que
gera apegos, e daí surge vairaga, o
desapego.
Sankara
enfatiza a importância do discernimento espiritual (viveka). Ele discerne o
Atman do não-Atman, leva à uma percepção direta do si-mesmo (como o processo de
individuação da psicologia Junguiana). No Vivekachudamani é dito que “a
libertação final só pode ser alcançada através dos méritos de cem bilhões de
encarnações bem-vividas... Enquanto não despertarem para o conhecimento de sua
identidade com Atman, jamais atingirão a libertação.”
É esse
discernimento que revela a verdadeira da natureza da corda que não é cobra, é a
luz que se ascende, eliminando o medo gerado pelo desconhecimento. Sankara nos
diz que “ao meditar sobre a verdade, a miséria da vida mundana é totalmente
destruída”.
Equanto
estivermos limitados a dicotomia do apego/aversão, buscando objetos de
experiência agradáveis, sendo infeliz quando são desagradáveis, estaremos
gerando karma, presos a nossa noção de eu individual e separado. Nada disso tem
relação com o Atman em nós, pois este é sempre bem-aventurado.
“O Atman é
distinto de Maya... A natureza do Atman
é a pura consciência”, diz o Vivekachudamani. Portanto, a erudição pertencente
ao mundo manifesto, o intelectualismo da mente conceitual, nada disso levará a
libertação, apenas reforçará ainda mais o ego. Para conhece o Atman
diretamente, no íntimo, é necessario alcançar a serenidade.
O ser humano
está em estado de sonho, de servidão, porque confunde o não-Atman com sua real
essência. A ignorância nos faz identificar o Atman com o corpo, e assim tomamos
o que é transitório e perecivel por real. Isto nos faz retornar a roda de
nascimento e morte, até que seja desvelado o Atman, que brilha no santuário do
coração.
É bem sabido
que para os orientais, a consciência está no coração, e não no cérebro, pois
ela transcende o aspecto meramente racional do ser humano. Sankara ensina que
enquanto o tolo indentifica-se com seu corpo, como sendo seu ‘eu’, o homem
inteligente percebe que neste corpo há uma ‘alma’. Mas apenas o sábio, tendo
despertado jnana e viveka, o discernimento espiritual,
percebe o Atman como a realidade, e pensa “Eu sou Brahman”.
Assim, o
vedantino, através da meditação, de uma vida ‘sattvica’, e da busca pelo
despertar da Jnana, gera a real compreensão de que Atman é Brahman em nós, e
não há separatividade. Compreendendo a característica condicionada, trnasitória
e velada de Maya, geramos o desapego vairaga e nos libertamos da ignorancia,
avidya. Conhecer Atman em si mesmo é conhecer Nirguna Brahman, o absoluto.
É isso que
Jesus dizia para Tomé, no Livro Secreto
de Tomé (da Biblioteca de Nag Hammadi): “Aquele que conhece a si mesmo, já
adquiriu ao mesmo tempo o conhecimento das profundezas do Todo”.
A Vedanta e o
Budismo
Muitos acusaram Sankara de ser um
‘cripto-budista’ devido a extrema semelhança de seu ensinamento com aquele do
budismo Mahayana. Já outros vêem em Sankara críticas ao budismo. De fato há
muita semelhança entre os escritos de Nagarjuna e Vasubandhu e os de Sankara,
como demonstra Comans[2], que
também afirma que Gaudapada demonstra considerável familiariedade com o
pensamento Budista.
Além do mais, muitos escritos
budistas usam a mesma terminologia para se referir aos mesmos conceitos: avidya como causa de estarmos presos à
existencia condicionada, vairaga
(desapego) como aquilo que nos liberta, apego e aversão como causas do
sofrimento, a impermanência, a não-realidade do eu, a não separatividade, a
importância da sabedoria/conhecimento (prajna/jnana),
citta (mente conteitual) etc.
Certamente
os budistas theravadas negarão em absoluto qualquer tipo de ‘algo’ além do
não-eu, compreendem o Atman (com “A” maíusculo) como a ‘alma individual’ (com
“a” minúsculo), e portanto não podem conceber nada que tenha algum “eco” de
existência real. Seu annata seria algo que aparentemente
contradiz o Atman presente em nós como proposto pela Vedanta. Muitos seguidores
dessa forma de budismo sequer aceitam a idéia de renascimento (mais comum no
budismo mahayana e bastante presente no vajrayana), portanto obviamente não
encontrarão semelhanças com a Vedanta de Sankara.
Ainda que a maioria dos budistas – e
deve-se lembrar que o budismo possui diversas vertentes e interpretações, nem
sempre concordantes entre si – encarem Sunya (o ‘vazio dos fenômenos) como a
realidade última, poderíamos argumentar que o ensinamento sobre Sunya refere-se
ao mundo fenomênico, refere-se a Maya. Assim, Sunya é um ensinamento de fato
verdadeiro, quando compreendido na esfera de Maya, da manifestação. Quando
Nagarjuna (fundador da escola Madhyamika no séc II d.C.) explana sobre
paramarthasatya, a realidade de sunya, ele está se focando nesta questão
filosófica especifica, e não necessáriamente contradizendo outras possíveis
visões. O ‘não-eu’ e sunya são verdadeiros quando referentes à existência
condicionada.
Há escolas do budismo, como a Yogacara,
fundada por Asanga no séc IV d.C. que nos remete à idéia de uma “essência
imanente, que permeia a tudo”, muitas vezes chamada de alaya. Os Tathagatagarbha
sutras, anteriores a esta escola, vão trazer esta idéia de que há algo além
de sunya, que nos une a realidade ultima, a ‘semente de Buda’ em cada um de
nós, também chamado de ‘natureza búdica’. Assim, enquanto Sunya refere-se a
Maya, a natureza búdica refere-se a Nirguna. Ambos sendo ensinamentos válidos,
e não contraditórios.
É necessario
um estudo aprofundado em ambas as tradições para poder estabelecer possíveis
paralelos e também mostrar suas diferenças, de qualquer forma, não deixa de ser
interessante perceber a profunda semelhança de certos ensinamentos.
Bibliografia
BARTH, Auguste. The Religions of India. London:
Kegan Paul, 1921
COMANS, Michael. The Method of Early Advaita
Vedanta, a study of Gaudapada, Sankara, Suresvara and Padmapada. Delhi:
Motilal Barnasidas, 2000
HOELLER, Stephan A. Gnosticismo. Rio
de Janeiro: Nova Era, 2005.
MAYER, Marvin. THE NAG HAMMADI SCRIPTURES: The International
Edition. New York: Harper One, 2007
MUGDAL, S.G. Advaita of Sankara, A Reappraisal.
Delhi: Motilal Barnasidas, 1975
NAGARJUNA, A Grinalda Preciosa.
São Paulo: Palas Athena, 2006
SANKARA. VIVEKA-CHUDAMANI, A Jóia
Suprema da Sabedoria. Brasília: Editora Teosófica, 1992
SASTRI. A. Mahadeva. The Vedanta Doctrine of Sri
Sankaracharya. Delhi: Sri Satguru Publications, 1986
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