quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Filosofias da Índia - Advaita Vedanta

Advaita Vedanta


Origem
A Vedanta é uma das escolas tradicionais da filosofia da Índia, chamadas Darsanas. O iniciador dessa filosofia foi Gaudapada, que nos brinda com o Mandukya-karika, um comentário ao Mandukya Upanishad.  Gaudapada tornou-se o instrutor de Sankara quando este ainda era bastante novo. E Sankara foi o grande expositor da Vedanta, tendo morrido bastante jovem, na idade de 30 ou 32 anos.


Estabelecer a origem histórica da Vedanta é um desafio à parte. É sempre difícil determinar com precisão a data de qualquer evento particular que tenha ocorrido na história da Índia, pois os indianos, diferente de nós, não têm uma forte tradição historiográfica, e parecem pouco preocupados em estabelecer no tempo os nomes que marcaram sua época. Tal dificuldade é aumentada pela especulação de orientalistas cujo trabalho tende a confundir mais ainda, devido a seu conhecimento parcial da filosofia/religião hindu. Muitos autores atuais apenas repetem os estudos estabelecidos pela primeira vez no ocidente por parte destes orientalistas que viveram no século XIX. Assim, os possíveis erros continuam a serem repetidos por falta de maiores investigações, tomando por certas as datas previamente estabelecidas por outros.
É importante o estudante ter para si que no que concerne às datas indianas, nada é 100% seguro de se confiar. Muitos dos seguidores de Sankarcharya, os chamados Mathadhipatis, importantes na difusão do ensinamento Advaita, foram chamados pelo nome de Sankara, e por isso, referências a eles podem facilmente serem confundidas como sendo referências ao primeiro Sankara.
Enquanto Auguste Barth, em seu livro “The Religions of India”, coloca Sankara no século VIII d.C., sem informar como chegou a esta conclusão; outros autores afirmam que há muitas tradições que o colocam até mesmo antes da era cristã, corroborando as afirmativas de alguns indianos, como o Pandit vedantino T. Subba Row que afirmou que o gramático Panini cita Sankara, e, portanto, Sankara deveria ter vivido no século VI a.C. Há quem afirme que Sankara foi discípulo de Govindapa e que este seria um dos nomes de Patanjali.
O que deve ficar claro para nós é que o período exato em que Sankara floreceu não pode ser facilimente determinado, pois mesmo aqueles que pensam que ele viveu na era cristã, discordam entre si, gerando um período de até 400 anos de dúvida. O que se pode ter certeza é que a Vedanta surge após os Upanishads, geralmente datados entre o século nono e sexto antes da era cristã.
A palavra Vedanta significa “o fim dos Vedas”, no sentido de “alvo”, “objetivo”. Ela é uma decorrência da tradição védica. Considera-se que os Vedas vieram de uma tradição oral, trazida pelos arianos, e que foram redigidos apenas muito tempo depois. Não se sabe quão antigos são esses ensinamentos, mas alguns datam suas últimas edições escritas em torno do século VI a.C. Também podemos entender literalmetne como ‘fim dos vedas’, pois a Vedanta está principalmente baseada nos Upanishads, que aparecem no final de cada volume dos quatro Vedas.
Os Vedas são divididos em quatro: Rigveda, Yajurveda, Samaveda, Atarvaveda (sendo este o mais novo deles). Seus conteúdos variam entre mitos, rituais, mantras, poemas e cânticos, meditações, cosmologia e filosofia. Os Upanishads, que tratam de questões filosóficas/metafísicas são extensões dos Vedas. São citados mais de 180 Upanishads, porém 12 ficaram famosos, justamente por terem sido comentados por Sankara. Estes são: Isa, Prasna, Taittiriya, Brihadarannyaka, Kena, Mundaka, Aitereya, Svestasvatara, Khata, Mandukya, Chandogya, Kausitaki. O termo ‘upanishad’ significa “sentar-se aos pés do mestre”. Disso podemos inferir uma referência a uma tradição oral.
Patanjali, o sábio yogue autor dos Sutra Yogas, aborda os vários tipos de caminhos da yoga. Yoga significa união. Nada mais é que a união de Atman em nós com Brahmam supremo da Vedanta. Essas ‘divisões’ da yoga são aspectos dessa união. Nos Vedas temos ensinamentos referentes a aspectos de ação no mundo e liturgias (karma yoga), de devoção e entrega interna ao guru (bakti yoga) e outros. A hatta yoga, que é o que comunmente entende-se por yoga no ocidente, é apenas o aspecto de exercícios físicos, respirações e práticas internas. Mas a yoga também possui um lado filosófico, a jnana yoga, que é justamente a temática abordada nos Upanishads. A yoga que desperta a sabedoria.
Jnana em sânscrito possui a mesma raiz que gnosis, que:

 [...] não é o conhecimento racional e menos ainda um acúmulo de informação. A língua grega faz distinção entre o conhecimento teórico e o conhecimento obtido por meio da experiência direta. Este último é gnose. Elaine Pagels, em seu livro Os evangelhos gnósticos, indica que no sentido em que os próprios gnósticos usam o termo, ele pode ser traduzido como insight, pois gnose envolve um processo intuitivo que abarca tanto o conhecimento de si próprio como o conhecimento das realidades últimas, divinas.[1]

A definição de gnosis encaixa perfeitamente na definição de jnana. É este conhecimento, de si e das realidades últimas, do Atman em nós, que é a busca do praticante da jnana yoga ou da Vedanta.
A Vedanta difundida por Gaudapada e Sankara é chamada Advaita (não-dualista), posteriormente surgiram a Visistadvaita (não-dualista qualificada), cujo principal representante é Ramanuja, e a Vedanta Dvaita (dualista), representada por Madhva. A Advaita permanece soberana, e por isso será nosso enfoque. A Vedanta baseia-se nos Upanishads, no Bhagavad-Gita e nos Brahma-Sutras de badarayna (também chamado Vyasa), estes são os principais textos sobre os quais Sankara estabeleceu sua filosofia.


Nirguna Brahman
Uma das principais preocupações do ensinamento vedantino é a questão de Brahman (também chamado de Parabrahman em alguns textos). Brahman é a Lei Absoluta, imutável. No Katha Upanishad é dito que é “a causa sem causa. Apenas Brashman é, nada mais é”. Já o Kena Upanishad estabelece que “Brahman não é o ser que é adorado pelos homens” e, portanto, não pode ser visto como uma divindade.
Para o Prasna Upanishad, Brahman é OM, o som universal, a vibração primeira, que vibra no coração de todos os seres. “O universo surgiu de Brahman. Em Brahman ele vive e tem sua existência. Tudo é Brahman” ( Chandogya Upanishad). Quando os hindus entoam o mantra OM (ou AUM), é uma tentativa de conectar-se a Brahman. O Taittitiya Upanishad ensina que “deve-se meditar sobre Brahman como a fonte de todo pensamento, vida e ação. Ele é o esplendor na riqueza, é tudo. É auto-existente”.
Brahman é não dual, é o Um sem segundo. “É sem causa, sem efeito, sem interior, sem exterior” ( Brihadaranyaka Upanishad). Na Vedanta Brahman é chamado de Nirguna Brahman, a realidade última, o absoluto, pois não pode ser qualificado, é indiferenciado, sem atributos. Nirguna significa “sem gunas”, são as gunas que compõe o mundo fenomênico. O radical Nir é o mesmo nir da palavra Nirvana, que significa cessação. 
            Essa visão sobre Brahman é bastante semelhante à teologia negativa, como a expressa por Pseudo Dionísio por exemplo. Também encontramos ecos desse ‘incognoscível’ no Uno de Plotino, que só pode ser “conhecido” através da contemplação, pois é inefável, indizível. Já no gnosticismo temos a noção de um “Espírito Invisível”, ao qual olho algum é capaz de olhar. No Apócrifo de João (Biblioteca de Nag Hammadi) encontramos a passagem “O Uno é uma unidade sobre a qual nada rege”. Nesta obra ele é qualificado como pleno, ilimitável, insondável, indescritível etc. Também podemos nos lembrar do Tao Te King, onde Lao Tsé afirma que o TAO que pode ser dito não é o grande TAO (pois este é inefável).
            Ainda encontramos similitudes na idéia cabalística de Ain Soph, o Todo, que é autosuficiente e não pode ser limitado pela existência. O Ain Soph é o Não-ser (talvez semelhante ao de Parmênides), o princípio não manifestado e incompreensível de onde emanam os Sephiroth. Por mais impressionante que possa parecer, se olharmos para alguns textos islâmicos com olhos filosóficos, veremos novamente esse “primeiro princípio”. No “Tratado sobre a Unidade”, Ibn Arabi se refere a Allah como “ o primeiro sem anterioridade, o ultimo sem posteridade. Ele é visível sem exteriorizar-se. Ele é oculto sem esconder-se. Não há nada anterior.” E assim como os vedantinos dizem que não devemos confundir Brahman com Ishvara, Ibn Arabi diz: “é necessário compreender este Mistério para não cair no erro dos que crêem em encarnações de divindade.”
            Claro, não devemos forçar comparações de maneira rasa e superficial, igualando sistemas diferentes, mas ainda assim, parecem se referir de forma semelhante a seus princípios primeiros. Talvez a compreensão dessa realidade última como permeando todas as tradições nos ajude a compreender que Sankara não falava de Deus ao referir-se a Brahman (ou de um deus específico de seu sistema filosófico), mas falava de Paramarthika, esse absoluto, que se for de fato absoluto, o é para toda a humanidade.
            Sankara diz que o universo é uma sobreposição a Brahman. Brahman permanece eternamente infinito e imutável. Não está transformado neste universo. Ele simplesmente aparece a nós como esse universo, em nossa ignorância. Um Deus que cria um mundo limita a si mesmo pelo próprio ato da criação, ao criar, deixa de ser Uno, deixa de ser infinito. Ao mesmo tempo não se pode dizer que Sankara é monista, pois Brahman é um ‘não-um’, mas também é um ‘não-dois’.
            Em sua obra “Vivekachudamani”, Sankara afirma que “Brahman é supremo. É a realidade – o um sem segundo. É pura consiência, livre de qualquer mácula. É a própria serenidade. Não tem começo nem fim. Não conhece mudanças. Ele é imensurável, sem princípio, sem fim, supremo em sua glória.”


Sirguna Brahman - ou Ishvara - e o véu de Maya
                Brahman, este absoluto e incognoscível Uno, sem atributos, isto é, Nirguna, manifesta-se em Sirguna Brahman, com atributos, condicionado. Do absoluto Paramarthika surge o relativo Vyavaharika.
            Sirguna (ou Saguna) Brahman é Ishvara, o ‘Senhor’. Ishavara é o lar de toda a existência finita, é a causa do mundo. A oniciência e onipotência de Ishvara dependem da limitação. Pode ser entendido como Deus, como a última realidade empírica (e não a realidade absoluta). Este ‘Deus’ existe somente em relação ao universo, ao mundo como verdade convencional. Ainda assim, Ishavara mantém certa unidade, que não é comprometida pela pluralidade do mundo. Como o Nous de Plotino, que não é o Uno, mas não é múltiplo.
            Brahman, a realidade absoluta, é incapaz de ação ou mudança temporal. Por isso, somente Ishavara, que é Brahman unido a Maya, pode ser um princípio criativo. Para Sankara não devemos entender literalmente as histórias de criação do mundo. Até por que a própria manifestação é aparente. Não há de fato uma criação ou um criador, a única realidade é Brahman. Este só aparece como Ishvara quando visto pela relativa ignorância de Maya, o véu.
Ishvara é o efeito de Avidya (a ignorância que não vê a realidade) e Maya, é a ignorância baseada na grande ilusão. Para Swami Vivekananda, “o Deus pessoal é a leitura do Impessoal pela mente humana”. Na Vedanta Advaita Ishvara tem pouca imporância, pois ele é também um fenômeno.
O conceito advaita de Maya é o mesmo Prakriti da Darsana Samkhya. A divindade é Saguna, isto é, condicionado pelas trigunas de Prakriti: Tamas, Rajas e Sattva. As trigunas compõem o véu de Maya, formam a “camada inferior”, que não possui existência própria.
Tamas representa a energia densa, material, tudo que é compacto, pesado. Rajas representa os desejos, vicios, volições ativas e Sattva tudo que é harmonico, sutil e puro. É dito que enquanto Tamas e Rajas nos prendem mais em Maya, Sattva nos ajuda a nos libertarmo-nos. Tais gunas se manifestam em todos os fenômenos do mundo, e é devido a este entendimento que os antigos yogues não consumiam alimentos que eles caracterizavam como “tamásicos” ou “rajásicos”, dando preferência aos “sátvicos”, isto é, graos, frutas, vegetais.
Para o oriental não existe a dicotomia corpo e mente, o corpo é uma expressão material de aspectos que também são mente-espírito. Por isso a busca da libertação do samsara, isto é, da teia de Maya condicionada por avidya, era feita também através de práticas físicas e até escolhas detalhadas de alimentação, tudo para se aproximar cada vez mais de Sattva.
Assim, de Brahman, o absoluto incognocível, sem atributos – Nirguna, surge Saguna Brahman, Ishvara, que unido a Maya (com suas três gunas) gera o mundo manifesto, da multiplicidade. Quando Ishvara contempla e tem uma vontade, é através dessa vontade que Prakriti é colocada em atividade, e aparece o mundo da pluralidade.
Este mundo é como um truque de mágica, o mágico não é afetado por seus próprios truques. Da mesma forma, o supremo não é afetado pelo maya do samsara. O mundo é vikalpa e não vastu, isto é, é uma construção mental e não um objeto em si.
Para ilustrar essa questão uma imagem muito usada na Vedanta é a da cobra e da corda. A Vedanta não é niilista, o mundo de fato existe, mas existe de forma condicionada, relativa. E o modo como o percebemos e absolutizamos seus conceitos nos faz cair em erro. Como uma corda que alguem toca no escuro; a pessoa pode sentir medo achando que é uma cobra, o medo será real, assim como a corda, mas a noção de corda é ilusória, condicionada pela mente, e por isso, com o ascender da luz – o despertar da sabedoria – percebe-se a realidade da cobra como sendo apenas uma corda.
No âmbito do Absoluto, não existe bem nem mal, pois so há unidade. “A criação não é boa nem má, ela é o que é” dizia Ramana Maharishi. É a mente humana que coloca constructos na criação, vendo as coisas a partir de seu próprio ângulo, ignorando a transitoriedade, e absolutizando conceitos. Uma mente apegada a um eu ilusório que lhe parece permanente é como alguém que vê a realidade com um óculos com lente colorida, todo o mundo lhe parecerá diferente do que de fato o é.
            De fato podemos dizer que os objetos externos existem de certa forma, afinal, são percebidos por nós. O que não corresponde à realidade última é a cognição que temos deles. O grande erro reside também na absolutização dos conceitos, no “isto é isto”, ignorando tanto o véu de maya, quanto sua caracteristica de transitoriedade. A aparência de mundo é e não é. No estado de ignorância o mundo é vivenciado e existe tal como parece, mas no estado de iluminaçã ele cessa de existir.
            Isso nos lembra o conceito de interdependência e impermanência, ensinamentos fundamentais dentro do budismo. Por serem inderdependentes, os fenômenos só existem quando em relação a algo, por isso chamamos realidade relativa, samvritisatya.
            Para a Vedanta , o mal não é uma realidade, pois o mal implica na existencia do bem. Assim, sendo dualidade, só existe enquanto existência condicionada. A única realidade é Brahman, o um sem segundo. Só se pode considerar o problema do mal no nível de Ishvara.
            Sendo assim, pode-se criar um paralelo onde Brahman representa a sabedoria, a libertação, e Ishvara representa a ignorância e a prisão.


Atman e Avidya
                Quando Ishvara, junto com Maya e suas três gunas, “cria” o mundo manifesto, cria-se também a “ilusão de realidade”. Sankara identifica a experiência no mundo como um sonho do qual devemos despertar.
            De modo análogo à Alma do Mundo em Plotino, da qual surgem as almas, na Vedanta temos a idéia de Atman. Atman é a centelha de Brahman em cada um de nós, como a gota do oceano, que ao retornar para o oceano, torna-se ele próprio. Atman não é uma individualidade em si, pois é o reflexo de Brahman em nós. É a unidade em nós.
            A pessoa que possui esse Atman é chamado Jiva. Erroneamente muitos chamam o Jiva de “Atman individual”, porém isso seria um equívoco de denominação. É dito que o Jiva é uma conglomeração de Atman enclausurado em um corpo sutil, com os pranas, o karma, manas (mente), e antakarana (fio condutor que leva o entendimento do inferior ao superior). Ele, o Jiva, é a consciência condicionada por avidya. O Jiva falha em conhecer a relatividade do mundo dual, mas quando dissolve o ‘eu’ e o ‘meu’, seu karma cessa, jnana desperta, e surge a libertação, a união do Atman com Brahman, também chamada moksha.
Isto é, o principal obstáculo é a falsa identificação do eu. Assim como no budismo Mahayana, a Vedanta entende que o que nos mantém presos nesta realidade aparente, é avidya. Geralmente traduzida por ignorância, avidya literalmente significa ‘não-visão’.
            Avidya será a causa central da não libertação. No budismo ela é a segunda nobre verdade, a causa do sofrimento. A partir dela surgem os kleshas (emoções aflitivas, ou vícios), principalmente a dupla “apego/aversão”. A idéia central por trás de avidya é a noção que geramos de sermos um ‘eu’ individual, separado, fixo, que não compreende a realidade tal qual ela é. Esse senso de eu, de individualidade, é chamado ahamkara, que ja é por si só uma visão errônea.
            Para a Vedanta tudo é transitoriedade, portanto não há sentido nenhum no apego. Tudo que é transitório é irreal, a única realidade é Brahman/Atman, que são Unos. Sendo tudo transitório, a idéia que nós chamamos de ‘renascimento’ é abordada pela Vedanta. O ensinamento novamente é muito semelhante ao do budismo Mahayana, estaríamos presos em uma roda de renascimento compulsório, condicionados por avidya, e enquanto não desenvolvermos vairaga, o desapego, continuaremos a renascer.
            Tudo que foge da harmonia plena, da ressonância com Brahman, gera karma, este karma, seja positivo ou negativo, compele a continuarmos presos, pois nosso Atman, unido a Brahman, torna-se uno, portanto não poderia gerar nenhum tipo de karma ‘pessoal’, sendo assim quem gera karma é o Jiva.
            A chave para a libertação é janana, a sabedoria que compreende a realidade, que desvela o Atman e o Une a Brahman, que retira a poeira do espelho de nosso ser e o faz refletir a luz do absoluto. Havendo jnana não é mais possivel a ignorância que gera apegos, e daí surge vairaga, o desapego.
            Sankara enfatiza a importância do discernimento espiritual (viveka). Ele discerne o Atman do não-Atman, leva à uma percepção direta do si-mesmo (como o processo de individuação da psicologia Junguiana). No Vivekachudamani é dito que “a libertação final só pode ser alcançada através dos méritos de cem bilhões de encarnações bem-vividas... Enquanto não despertarem para o conhecimento de sua identidade com Atman, jamais atingirão a libertação.”
            É esse discernimento que revela a verdadeira da natureza da corda que não é cobra, é a luz que se ascende, eliminando o medo gerado pelo desconhecimento. Sankara nos diz que “ao meditar sobre a verdade, a miséria da vida mundana é totalmente destruída”.
            Equanto estivermos limitados a dicotomia do apego/aversão, buscando objetos de experiência agradáveis, sendo infeliz quando são desagradáveis, estaremos gerando karma, presos a nossa noção de eu individual e separado. Nada disso tem relação com o Atman em nós, pois este é sempre bem-aventurado.
            “O Atman é distinto de Maya...  A natureza do Atman é a pura consciência”, diz o Vivekachudamani. Portanto, a erudição pertencente ao mundo manifesto, o intelectualismo da mente conceitual, nada disso levará a libertação, apenas reforçará ainda mais o ego. Para conhece o Atman diretamente, no íntimo, é necessario alcançar a serenidade.
            O ser humano está em estado de sonho, de servidão, porque confunde o não-Atman com sua real essência. A ignorância nos faz identificar o Atman com o corpo, e assim tomamos o que é transitório e perecivel por real. Isto nos faz retornar a roda de nascimento e morte, até que seja desvelado o Atman, que brilha no santuário do coração.
            É bem sabido que para os orientais, a consciência está no coração, e não no cérebro, pois ela transcende o aspecto meramente racional do ser humano. Sankara ensina que enquanto o tolo indentifica-se com seu corpo, como sendo seu ‘eu’, o homem inteligente percebe que neste corpo há uma ‘alma’. Mas apenas o sábio, tendo despertado jnana e viveka, o discernimento espiritual, percebe o Atman como a realidade, e pensa “Eu sou Brahman”.
            Assim, o vedantino, através da meditação, de uma vida ‘sattvica’, e da busca pelo despertar da Jnana, gera a real compreensão de que Atman é Brahman em nós, e não há separatividade. Compreendendo a característica condicionada, trnasitória e velada de Maya, geramos o desapego vairaga e nos libertamos da ignorancia, avidya. Conhecer Atman em si mesmo é conhecer Nirguna Brahman, o absoluto.
            É isso que Jesus dizia para Tomé, no Livro Secreto de Tomé (da Biblioteca de Nag Hammadi): “Aquele que conhece a si mesmo, já adquiriu ao mesmo tempo o conhecimento das profundezas do Todo”.


A Vedanta e o Budismo

                Muitos acusaram Sankara de ser um ‘cripto-budista’ devido a extrema semelhança de seu ensinamento com aquele do budismo Mahayana. Já outros vêem em Sankara críticas ao budismo. De fato há muita semelhança entre os escritos de Nagarjuna e Vasubandhu e os de Sankara, como demonstra Comans[2], que também afirma que Gaudapada demonstra considerável familiariedade com o pensamento Budista.
Além do mais, muitos escritos budistas usam a mesma terminologia para se referir aos mesmos conceitos: avidya como causa de estarmos presos à existencia condicionada, vairaga (desapego) como aquilo que nos liberta, apego e aversão como causas do sofrimento, a impermanência, a não-realidade do eu, a não separatividade, a importância da sabedoria/conhecimento (prajna/jnana), citta (mente conteitual) etc.
            Certamente os budistas theravadas negarão em absoluto qualquer tipo de ‘algo’ além do não-eu, compreendem o Atman (com “A” maíusculo) como a ‘alma individual’ (com “a” minúsculo), e portanto não podem conceber nada que tenha algum “eco” de existência real.  Seu annata seria algo que aparentemente contradiz o Atman presente em nós como proposto pela Vedanta. Muitos seguidores dessa forma de budismo sequer aceitam a idéia de renascimento (mais comum no budismo mahayana e bastante presente no vajrayana), portanto obviamente não encontrarão semelhanças com a Vedanta de Sankara.
Ainda que a maioria dos budistas – e deve-se lembrar que o budismo possui diversas vertentes e interpretações, nem sempre concordantes entre si – encarem Sunya (o ‘vazio dos fenômenos) como a realidade última, poderíamos argumentar que o ensinamento sobre Sunya refere-se ao mundo fenomênico, refere-se a Maya. Assim, Sunya é um ensinamento de fato verdadeiro, quando compreendido na esfera de Maya, da manifestação. Quando Nagarjuna (fundador da escola Madhyamika no séc II d.C.) explana sobre paramarthasatya, a realidade de sunya, ele está se focando nesta questão filosófica especifica, e não necessáriamente contradizendo outras possíveis visões. O ‘não-eu’ e sunya são verdadeiros quando referentes à existência condicionada.
 Há escolas do budismo, como a Yogacara, fundada por Asanga no séc IV d.C. que nos remete à idéia de uma “essência imanente, que permeia a tudo”, muitas vezes chamada de alaya. Os Tathagatagarbha sutras, anteriores a esta escola, vão trazer esta idéia de que há algo além de sunya, que nos une a realidade ultima, a ‘semente de Buda’ em cada um de nós, também chamado de ‘natureza búdica’. Assim, enquanto Sunya refere-se a Maya, a natureza búdica refere-se a Nirguna. Ambos sendo ensinamentos válidos, e não contraditórios.
            É necessario um estudo aprofundado em ambas as tradições para poder estabelecer possíveis paralelos e também mostrar suas diferenças, de qualquer forma, não deixa de ser interessante perceber a profunda semelhança de certos ensinamentos.



Bibliografia

BARTH, Auguste. The Religions of India. London: Kegan Paul, 1921

COMANS, Michael. The Method of Early Advaita Vedanta, a study of Gaudapada, Sankara, Suresvara and Padmapada. Delhi: Motilal Barnasidas, 2000

HOELLER, Stephan A. Gnosticismo. Rio de Janeiro: Nova Era, 2005.

MAYER, Marvin. THE NAG HAMMADI SCRIPTURES: The International Edition. New York: Harper One, 2007

MUGDAL, S.G. Advaita of Sankara, A Reappraisal. Delhi:  Motilal Barnasidas, 1975

NAGARJUNA, A Grinalda Preciosa. São Paulo: Palas Athena, 2006

SANKARA. VIVEKA-CHUDAMANI, A Jóia Suprema da Sabedoria. Brasília: Editora Teosófica, 1992

SASTRI. A. Mahadeva. The Vedanta Doctrine of Sri Sankaracharya. Delhi: Sri Satguru Publications, 1986




[1] HOELLER, Stephan A. Gnosticismo. Rio de Janeiro: Nova Era, 2005. p. 16.
[2] COMANS, Michael. The Method of Early Advaita Vedanta, a study of Gaudapada, Sankara, Suresvara and Padmapada. Delhi, 2000. Motilal Barnasidas

Nenhum comentário:

Postar um comentário