terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Plotino e os Gnósticos: Sobre o UM


Relações de Plotino com os Gnósticos: O inefável Um.
Aláya Dullius de Souza

Esse texto, escrito por mim um ano antes da defesa da minha dissertação de Mestrado "O Apócrifo de João e a Enéada VI 9 de Plotino - Relações sobre o Um", foi publicado em 2010 como um capítulo do livro "Sobre as Origens da Filosofia - primeiros ensaios". Um esforço do grupo Archai (editora et cetera).
Plotino, filósofo neoplatônico do século III d.C., foi discípulo de Amônio Saccas, e sua escola e seu Mestre é o tema discorrido por H.P.Blavatsky no primeiro capítulo do livro "A Chave para a Teosofia". A eles é dada grande importância. Plotino é um filósofo do silêncio, da mística, e um 'teósofo' na verdadeira acepção da palavra. Durante sua vida estabeleceu trocas e relações com alguns grupos gnósticos, e buscou conhecer sobre as filosofias do oriente. Seu legado é enorme, e sua obra culmina com a contemplação da Unidade. Espero que esse breve texto ajude a trazer mais luz sobre esses professores espirituais!



Relações de Plotino com os Gnósticos:

Gilles Quispel, em sua resenha da obra Six Lectures on Plotinus and Gnosticism afirma que “o autor deste livro atingiu o que Hans Jonas havia prometido fazer mas nunca o fez: escreveu um livro sobre o impacto do Gnosticismo em Plotino.” (2000, p.109)[1] No prefácio de seu livro, Sinnige declara que esteve, e ainda está, muito presente uma tradição de vermos tudo a partir de uma perspectiva Platônica, mas que, de modo crescente, um novo paradigma faz-se sentir em nossos dias sob a influência de um crescente interesse no Gnosticismo.
Este interesse não cresce apenas em trabalhos que demonstram as diferenças cruciais entre Plotino e seus “adversarios”. Lentamente os estudos comparados que vão mais a fundo em seu entendimento das idéias gnósticas mostram que talvez haja mais de gnosticismo em Plotino que alguns estão dispostos a admitir.
Mazur refere que

o elemento mais crucial do misticismo de Plotino – sua concepção de união mística com o Um - não pode ser corretamente entendido apenas no contexto da história convencional da filosofia, mas deve ser recontextualizado de forma mais ampla junto à prática e pensamento gnósticos… a união mística em Plotino, a um grau significante, está tacitamente sustentada em uma estrutura retirada da metafísica gnóstica. (2010, p.1)

Claro que há fortes diferenças entre eles, especialmente relacionadas às suas visões a respeito da matéria e da origem do mal, mas, como diz Joseph Katz

há um fato muito mais importante parece ter escapado aos intérpretes. Pois é incrível como quase todas as idéias que Plotino considera questionáveis nos Gnósticos foram afirmadas por ele mesmo de uma forma ou outra, consequentemente, isto revela mais uma tensão vital no sistema de Plotino do que uma mera diferenciação externa de uma doutrina da outra. (1954, p.289)    
                                                    
Para Sinnige (1999, p.01) “é claro que nas Enéadas, as doutrinas ou mitos Gnósticos são criticados em palavras que evidentemente são de uso comum entre Plotino e seus adversários.” As Enéadas que possuem maior aproximação ao Gnosticismo são as que Plotino escreveu antes da chegada de Porfírio em sua escola, cronologicamente da 1 à 21.
 Puech também considera que houve uma época na vida de nosso filósofo que seu pensamento poderia se confundir com o pensamento gnóstico. Ele diz que “é inegável que o Gnosticismo parecia a Plotino uma caricatura de certos aspectos de seu próprio pensamento”. (1982, p145)
Alguns acreditam que os primeiros tratados de Plotino não demonstram somente as próprias idéias do filósofo, mas, tendo quebrado seus dez anos de silêncio, ele também está mostrando aspectos do que aprendeu com Amônio Saccas. Pode-se dizer, por exemplo que a doutrina da emanação possui muito mais semelhança com o pensamento Gnóstico – e até mesmo com o pensamento Indiano (como a Vedanta Advaita) – do que com o próprio Platão.
                                   
Plotino aceita o emanacionismo como auto-evidente. Ele não sente necessidade de argumentar sobre isso apelando para Platão. A doutrina é tão fundamental ao sistema das Enéadas que é explicada em todo lugar, e em nenhum lugar duvidada.” (Sinnige, 1999. p.08)

Este tipo de reflexão nos faz focar no contexto cultural de Alexandria e refletir sobre que tipos de idéias podem ter sido impressas na mente do filósofo durante os onze anos que lá viveu estudando com Amônio Saccas, como indica Porfírio em Vita Plotini.
Certamente muitas teorias não necessitam serem consideradas especificamente como gnósticas, já que fazem parte de um conjunto de idéias geralmente aceitas nas escolas de filosofia de Alexandria.

“É melhor não falar de ‘influência gnóstica’, como se Plotino pudesse ter encontrado no sistema gnóstico algumas teorias que fossem aptas a serem inseridas na arquitetura de seu próprio sistema. Na verdade estas doutrinas parecem ter feito parte do ‘espírito da época’ como atesta Dodds.” (Sinnige, 1999, p.01)

             Apesar de alguns tenderem a pensar os sistemas filosóficos e religiosos como sendo separados um do outro, seguindo suas próprias linhas na história, devemos ter em mente que os primeiros séculos de nossa era foram palco de inúmeras trocas de pensamentos, especialmente quando vindos de grandes centros culturais como Alexandria, Antioquia e Roma. A semelhança entre as idéias não pode ser entendida como uma influência de um em outro, mas como consequência de um background em comum, um compartilhamento dos mesmos paradigmas da época.
Portanto,
colocar Plotino no horizonte Alexandrino deveria nos conscientizar das muitas relações familiares que se entrelaçam entre as Enéadas e as escolas de filosofia de Alexandria. Isto nos coloca em uma posição que favorece o entendimento da originalidade de Plotino ao mesmo tempo que percebemos o quão profundamente ele compartilhou as convicções religiosas de seu século. (Sinnige, 1999, p.26)

Sendo assim, somos levados a considerar quais eram essas idéias que compartilhavam o ambiente., pois “certamente Plotino estava familiarizado com o gnosticimo” (Mazour, 2010, p.01). Porfírio (em Vita 3) nos conta a história do primeiro encontro de Plotino com seu professor Amônio Saccas. A reação de Plotino foi: ‘este é homem que eu estava procurando’. Porfírio enfatiza que um dos possíveis e duradouros efeitos do convívio de Plotino com Amônio foi o interesse do primeiro em seguir com a expedição do emperador Górdio para conhecer as filosofias da Pérsia e da Índia. “O texto não deixa dúvida quanto a presença de elementos Indianos e Persas nos ensinamentos de Amônio.” (Sinnige, 1999, p.26). Ou ao menos demonstra um interesse cultivado por Plotino, interesse este que demonstra que o filósofo, tendo vivido na diversidade cultural de Alexandria, ansiava em seu aprendizado por buscar diversas formas de pensamento, e não se restringia a ser apenas platonista, ainda que Platão tenha permanecido como o mais importante filósofo para Plotino.
Flávio Filostrato, em seu De Vita Apollonii descreve Brâmanes. Clemente de Alexandria menciona sábios da Índia em suas Stromatas, e há até mesmo uma referência aos gimnosofistas que vivam no Egito naquela época. Podemos também inferir a presença ainda notável do Hermetismo, do Judaismo Platônico de Fílon, do Orfismo e diversos outros tipos de filosofias, ensinamentos religiosos e tradições de mistério. O que Plotino de fato aprendeu em Alexandria é algo que podemos apenas supor, mas certamente a busca pelo Um e a condição da alma humana pareciam para ele serem pontos essenciais de sua busca, e ele estava disposto até mesmo a ir à Índia para aprender mais.
E quanto ao Gnosticismo? O que há de gnóstico naqueles primeiros séculos da era cristã? Amônio Saccas foi contemporâneo de Bardesanes, ligado ao gnosticismo de Tomé, na Síria, e conta-se que Bardesanes esteve em Alexandria. Como ja vimos, uma obra cuja edição é atribuída a ele (autoria atribuída a Tomé), o Hino da Pérola, descreve de forma alegórica a queda da alma, que deve recuperar uma pérola do fundo do oceano e retornar à sua patria, mas que se mistura aos ‘habitantes locais’ e esquece de sua missão. A descrição é bastante análoga ao modo como Plotino descreve a queda da alma, a alma que deve despir-se de suas vestes do mundo para contemplar o Um.
Outro importante exponente gnóstico a ser lembrado é Basílides, que viveu um século antes de Plotino. A “descrição de suas doutrinas é sem duvida talhada nos conceitos da tradição Platônica… podemos encontrar algumas teorias metafísicas que demonstram mais do que uma semelhança superficial a temas Plotinianos.” (Sinnige, 1999, p.28) Não é improvável que Plotino possa ter tido contado com os ensinamentos de Basíledes.
Valentino, que educou-se em Alexandria e conhecia Orígenes, ensinou em Roma entre os anos 135 e 160 d.C. E sua escola perdurou até a época de Plotino. O tratado II 9, intitulado por Porfírio por Contra os Gnósticos é geralmente considerado como resultado de um conflito com membros dessa escola de Valentino., como Sinnige indica (1999, p.35) Além disso, Puech (1982, p.139) considera que há consideráveis pontos de contato entre as doutrinas de Numênio de Apamea, mestre de Amônio Saccas, e Valentino, o que nos trás mais inferências a respeito de um possível contato de Plotino com idéias gnósticas.
Dodds (Puech, 1982, p.146) afirma que Numênio, além de conhecido Neopitagórico e Platonista, era certamente Gnóstico. Não em um sentido estrito, afinal Numênio não utiliza a terminologia característica dos textos gnósticos, contudo, muitas de suas idéias encontram ecos nas idéias apresentadas por estes. Tal afirmação de Dodds a respeito do mestre do professor de Plotino é certamente notável. Vale lembrar que Numênio viveu em Apamea, próximo a Antioquia, cidade esta que foi um dos mais fortes focos do gnosticismo na antiguidade. Foi em Antioquia que líderes gnósticos como Menander e Satornilo ensinaram.
Além disso, sabemos, através de Porfírio, que Numênio era lido na escola de Plotino, e que a semelhança de certos aspectos entre o pensamento de Plotino com o deste “gnóstico” era tanta que Amélio teve que defender Plotino de uma acusação de Plágio de Numênio. Se havia alguma influência gnóstica no ensinamento de Numênio, certamente esta chegou a Plotino, seja através de Amônio indiretamente, seja diretamente através da presença de alunos de Numênio na escola de Plotino, e o estudo de seus textos em Roma.

As datas, o lugar onde Numênio viveu, o incrível paralelismo entre ambas doutrinas, tornam bastante plausível considerarmos a influência do Gnosticismo, talvez em sua forma Valentiniana, em nosso filósofo de Apamea. Isto já foi sustentado pela maioria dos críticos. A gnosis era o ponto de contato entre o oriente – especialmente o Irã, que, por exemplo, relaciona seu dualismo com Basílides – e Numênio, que construiu seus sistema sobre a estrutura da Gnosis. (Puech, 1982, pp.88-89)

 Levando estas perspectivas em conta, podemos inferir muitos “pontos de contato”, possíveis pontes entre Plotino e o Gnosticismo (que por si mesmo ja é bastante heterogêneo). Por muito tempo os estudos em relação a esta temática se focaram de forma quase que unilateral apenas nas discrepâncias entre esses dois “sistemas”, já que o próprio filósofo de fato se dedicou a apontar estas diferenças, que são, certamente, bastante claras e não podem, de forma alguma, serem negadas. Entretanto, como pesquisadores, devemos permitir a nós mesmos considerarmos que semelhanças e aproximações também possuem relevância no estudo.
Por fim, e não menos importante, Hanckock, em seu artigo Teologia Negativa no Gnosticismo e no Neoplatonismo (Wallis, 1992), declara que apesar de existirem diferenças de perspectiva entre o Gnosticismo e o Neoplatonismo, a “Biblioteca de Nag Hammadi demonstra que as duas escolas estão plena harmonia no que se refere à teologia negativa”, isto é, no modo em que abordam o Um. E a experiência hipernoética, isto é, o retorno ao Um, era certamente o âmago da filosofia plotiniana.

Se confiarmos em Porfírio (VP 23) o objetivo final da vida de Plotino e de sua filosofia era a uniao mística – isto é, a conjunção, assimilação ou completa identificação – do âmago do ser humano com o supremo e transcendente princípio, o Um. Ao longo das Enéadas Plotino repetidamente implica que ele teve essa experiência, e Porfírio confirma que Plotino atingiu a união em quatro ocasiões em que estavam juntos (VP 23. 16-17). Mas o que de fato isso significa é altamente enigmático. (Mazour, 2010, p.01)





O Inefável Um:

Assim, falar sobre o Um, torna-se um problema para o historiador da filosofia, já que esse ato de união, como demonstra Plotino (VI.9.4.1-4), está além dos parâmetros da filosofia convencional. Não se trata de um mero discurso filosófico, havia uma prática que sustentava esse discurso.
Para Mazour (2010, p.01) essa união mística em Plotino era “estruturada em uma metafísica gnóstica e derivada de uma internalização da prática gnóstica,” que Plotino corrigiu e reformulou em termos do platonismo. Portanto, ainda que muitos estudiosos considerem o misticismo em Plotino como um aspecto constrangedor ou irrelevante do pensamento de Plotino, “como um tipo de irracionalidade sub-filosófica” (Mazour 2010, p.02), deveriamos buscar entender o contexto religioso e filosófico em que Plotino situou sua busca, já que os “estágios mais elevados de ascenção mística em Plotino não envolvem cogitações filosóficas. (Mazour, 2010, p.02)
Para tanto, é útil buscar compreender se há pontos em comum quanto à visão sobre o Um entre os ensinamentos apresentados nas Enéadas e outras “linhas de pensamento”, como por exemplo, os gnósticos. Entender como eles viam o Um, ou até que ponto foram influenciados pelo médio-platonismo, nos auxilia a encaixar Plotino em seu devido contexto e a traçar novas perspectivas a respeito de sua filosofia.
Geralmente entende-se que a união com o Um se trata de uma “segunda senda”. Isto é, primeiro a alma se despoja de suas vestes do mundo através de um longo processso de preparação, uma espécie de ascenção filosófica ou contato com as verdades imanentes. Tal prática se dará através da dialética, do desenvolvimento de virtudes, da purificação e da busca pelas Belezas inteligíveis. Progressivamente a alma deixa de se envolver com as preocupações externas e deixa de confundir o sensível com o inteligível. Gradualmente a alma assimila a hipóstase do Nous. Depois disso, daria-se um processo de contemplação, de cessação da dualidade na alma, produzindo-se assim uma completa e silenciosa união com o Um.
Assim, o Um, como meta final, torna-se o objeto de nosso estudo, visando um melhor entendimento de como este é descrito por Plotino e por certos gnósticos. Geralmente o Um é colocado como “absoluta unidade, sua simplicidade última o torna inacessível a qualquer tipo de intelecção comum, que necessita ao menos de uma dualidade lógica mínima entre sujeito e objeto de conhecimento. O Um, portanto, habita fora da visão puramente discursiva da filosofia.” (Mazour, 2010, p.01)
Podemos encontrar algum tipo de concordância entre as Enéadas e os textos gnósticos, especialmente no que se refere aos tratados do primeiro período de Plotino, a respeito da inefabílidade do Um e os primeiros capítulos do Apócrifo de João.
A Enéada VI 9, cronologicamente a nona, é o ultimo tratado na longa sequência de Enéadas organizadas por Porfírio. “Ele a colocou no final como uma jóia que coroa o ápice da filosofia Plotiniana, a contemplação do Um, mas na ordem cronológica esta Enéada faz parte de uma série de cerca de 12 tratados inciais, os primeiros a serem escritos por Plotino. Essa série revela uma preocupação fundamental: guiar a alma à seu destino final.” (Sinnige, 1999, p.20)
Esta Enéada começa com uma análise metafísica do conceito de Unidade, e o ponto central do argumento é que o Um pode apenas ser objeto de contemplação, tendo sido extinguida a dualidade que distringue objeto de sujeito. “O conhecimento do Um não pode ser alcançado pelo pensamento” [VI 9 (9) 4, 13]
Atribuir qualquer tipo de característica ao Um, a fim de tentar entendê-lo através do pensamento é algo extremamente delicado, pois os ensinamentos sobre o Um referem justamente que ele não pode ser qualificado.
Apesar disso, há algumas idéias que surgem dessa tentativa de explicar em palavras o que não é dual, dessa forma podemos trabalhar afim de encontrar denominadores comuns entre Plotino e os Gnósticos.
A primeira delas é que ao Um nada falta, de nada o Um tem necessidade, e não há nada ante ele.
Também podemos dizer que o Um não é como um Ser ou um Deus: “O Primeiro não é um ser, mas precede todos os seres [VI 9 (9) 3].” Em outra passagem [VI 9 (9) 6] Plotino afirma que se pensamos no Um como Mente ou Deus, estamos pensando de forma muito errada.                                                          
O Um não pode ser medido, pois não possui forma, nem pode ser qualificado: “O Um é sem forma… não é uma coisa, nem uma quantidade, não é qualidade, não é intelecto nem alma; não está em movimento nem está em repouso, não está em um lugar nem está no tempo: é auto-definido, único em forma ou melhor, sem forma, existindo antes da Forma” [VI 9 (9) 3].
Outra definição que podemos dar ao Um é a impossibilidade de ser nomeado: “Nenhum nome pode ser atribuído adequadamente a ele, no entanto, como é preciso nomeá-lo, podemos chama-lo de ‘Um’.” [VI 9 (9) 5].
Há também uma impossibilidade de compreensão, pois está além do conhecimento: “A consciência em relação a esse Princípio não vem nem através do conhecimento nem através da Intelecção que descobre os Seres Intelectuais, mas por uma presence que transcende todo conhecimento. No processo de conhecer, a mente ou alma abandona sua unidade… Todo objeto de pensamento, até mesmo o mais elevado, devemos deixar passar… ‘Não deve ser objeto de discurso, nem de escrita’: se falamos e escrevemos a seu respeito é apenas para conduzir a ele, para encorajar a contemplação” [VI 9 (9) 4].
A busca de Plotino é a busca pelo mundo Inteligível – que para os Gnósticos corresponde, de certa forma, ao Pleroma – pela contemplação do Um. É uma busca pela sabedoria imanente, e, neste sentido, podemos dizer que é uma busca pela gnosis, pois gnosis é um conhecimento imanente, uma sabedoria que surge a partir da vivência, de despertar. Este alvo, a gnosis, reflete uma experiência vital de sabedoria, onde a contemplação leva à cessação da dualidade interna.
Assim, pelo Apócrifo de João ser um dos textos gnósticos mais lidos e copiados na antiguidade, ele nos fornece uma boa base para nosso estudo comparativo. “Wolf-Peter Funk argumentou que as diferenças dialéticas entre os textos dos codices de Nag Hammadi indicam que foram repetidamente copiados e distribuidos.”(King, 2006, p.18)
Este texto permaneceu “completamente desconhecido para o mundo moderno até 1896 quando um papíro do século IV d.C. apareceu no Mercado de antiguidades do Cairo.” (King, 2006, p.08) Então, em 1945, com a descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi, mais três copias chegaram às nossas mãos. “Duas cópias de uma versão mais longa, dos codices II e IV, são praticamente idênticas.” (King, 2006, p.25)
O Apócrifo de João que está no Códice de Berlim é a maior das cópias, com 58 páginas; as versões de Nag Hammadi possuem uma media de 40 páginas. Estas cópias são traduções do Grego para a lingua Copta. Os manuscritos parecem ter sido copiados ínumeras vezes, o que corrobora a idéia de uma ampla circulação.
É um texto composto de pelo menos quarto seções – Cristã, Judaica, Platônica e um Hino ao fim. De forma geral é uma obra de características setianas. Talvez possamos pensar que a introdução e finalização de tom cristão seja uma adição posterior, quem sabe feita pelos valentinianos, que foram considerados os mais cristãos dentre os grupos gnósticos.
 King (2006, p.10) afirma que é relativamente fácil remover todas as referências a Jesus e a João sem bagunçar a história central da obra. Os dois nomes aparecem apenas na introdução e conclusão. Sem estes elementos, indica King, nada de especificamente cristão remanesce na obra.
Sobre sua datação, é provavel que seja do Segundo século.

A evidência mais recente que temos da existência do Apócrifo de João é encontrada nos escritos de Ireneu, um teólogo cristão de Smirna, na Ásia Menor, que visitou Roma e mais tarde tornou-se bispo de Lyon. Em torno de 180 d.C. ele escreveu uma obra polêmica, comunmente conhecida por Contra as Heresias. Nela, ele relata uma teogonia, uma história da geração do Reino Divino, que mostra muita semelhança com a teogonia do Apócrifo de João. As semelhanças são suficientemente próximas para que tiremos a conclusão de que Ireneu deve ter tido contato com pelo menos alguma versão do Apócrifo de João. Já que ele escreve sua refutação em Roma, então possivelmente esta versão tenha sido conhecida pelos cristãos que viveram em torno de 180 d.C. (King, 2006, p.17)

Nosso foco de estudo são os capítulos quarto e cinco do Apócrifo de João, logo após a introdução cristianizada do texto. O capítulo quarto começa com uma “descrição da Deidade transcendente, pintada primariamente com imagens, termos e conceitos prevalentes na especulação filosófica Platonista corrente na época. Essa Deídade transcendente é descrita como uma Mônada, uma unidade indivisível, a fonte e fundação de tudo” (King, 2006, p.85). É uma descrição apofática, semelhante à que encontramos em Plotino.
Encontramos neste Apócrifo algumas características atribuídas ao Um na tentativa de trazê-lo ao discurso bastante semelhantes àquelas que foram exemplificadas a partir da Enéada VI 9.
Em relação a não carecer nada é dito que “não há nada antes Dele[2], nem ele necessida de nada. Não necessida vida” (BG 4, 7-8). Também lemos que “Ele é eterno já que não necessita de nada. É totalmente perfeito. Nada lhe falta.. É sempre completamente perfeito na luz” (NHC II 4, 10-12).
O autor deste texto também afirma que não é como um Deus: “Não é perfeição nem bem-aventurança nem divindade, é algo muito superior” (BG 4, 22-25). Na versão encontrada em Nag Hammadi é ditto que: “Não é apropriado considerá-lo como um deus ou algo similar. Pois é mais que divino, sem nada existindo acima dele, pois nada o rege.” (NHC II 4, 5-6).
Similar a Plotino, o equivalente ao ‘Um’ neste apócrifo não possui forma nem pode ser medido ou qualificado. Em NHC II 4, 13 vemos: “Não pode ser limitado pois não há nada antes dele que possa limita-lo, é inescrutável (14), imensurável (15), invisível (16)… Não é uma qualidade (27).” E no Códice de Berlim: “Não é corpóreo nem incorpóreo. Não é grande nem pequeno” (BG 4, 22-25).
Quanto a não ser possível nomeá-lo, o Apócrifo de João afirma que é inefável já que ninguém pode compreende-lo para falar sobre ele, “existe na pura luz para qual olho algum é capaz de olhar” (NHC II 4, 3-4). “É inominável pois não há nada anterior a ele para dar-lhe um nome” (NHC II 4, 18-19).
Outras características facilmente encontrada nos ensinamentos de Plotino também são encontradas nesse texto gnóstico. Obviamente nem sempre são descrições idênticas, mas os paralelos são bastante fortes. Há até mesmo similitudes quanto a descrição da emanação de uma segunda hipóstase, que surge a partir de uma ação de auto-reflexão do Um, que gera um pensamento ativo. Para os gnósticos, em geral, a segunda hipóstase é Barbelo, a Pronoia (Pensamento-Primeiro), que é a Mãe-Pai (não dual mas contend a dualidade em si), o útero gerador do mundo Inteligível.
 A busca de Plotino pelas realidade do Intelecto e do Um é primariamente pelo meio dialético – apesar de que podemos incluir o modo erótico também – e por meio da contemplação. Não se trata de erudição nem de acúmulo de conhecimento. Plotino mesmo indica que na contemplação do Um até mesmo os pensamentos mais elevados devem ser deixados de lado. Na experiência da unidade não há espaço para a dualidade de um sujeito que conhece um objeto.
É um conhecimento que vem como decorrência do que os gnósticos chamariam de pistis. Não em seu sentido comum de ‘fé’, mas de uma convicção decorrente de um despertar da sabedoria; de uma convição fruto da vivência que tira os véus da ignorância e experência o silêncio do Um. Isto é para os gnósticos a busca da gnosis.
 Como disse Gabriela Bal (2007) certa vez, “ler Plotino é penetrar em um pensamento que aparentemente ultrapassa toda a possibilidade de compreensão.” Pois quando a alma se retira para a unidade, se torna idêntica a seu objeto de contemplação.
Assim, “despojados de todo o mal em nossas intenções em direção ao Bem, devemos ascender ao Princípio em nós mesmos; de muitos, devemos nos tornar um; apenas assim atingimos o conhecimento daquilo que é Princípio e Unidade.” (Em. VI 9 (9) 3)



Bibliografia:
BAL, Gabriela. Silêncio e Contemplação: Uma introdução a Plotino. São Paulo, Paulus, 2007.
KATZ, Jospeh. Journal of the History of Ideas, Vol. 15, No. 2. Abril, 1954.
KING, Karen.  The Secret Revelation of John. Cambridge, Harvard University Press. 2006.
LAYTON, Bentley. “As escrituras Gnósticas”. São Paulo: Loyola, 2002.
MACKENNA, Stephen. “Plotinus, the Enneads”. New York: Larson Publications, 1992.
MAYER, Marvin. “The Nag Hammadi Scriptures”. New York: Harper, 2007.
MAZOUR, Zeke. “The Platonizing Sethian Gnostic Background of Plotinus’ Mysticism” (projeto de dissertação de doutorado). University of Chicago, 2010.
PUECH, Henri-Charles. En Torno a la Gnosis. Madrid: Taurus, 1982
QUISPEL, Gilles. Vigiliae Christianae, Vol. 54, No. 1, 2000.
SINNIGE, Th. G. “Six Lectures on Plotinus and Gnosticism”. Dordrecht: Kulwer, 1999.
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. “Plotino, um estudo das Enéadas”. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
WALLIS, Richard T.  “Neoplatonism and Gnosticism”. State University of New York Press, 1992.


[1] Vigiliae Christianae, Vol. 54, No. 1 (2000), p. 109
[2] O Um, no Apócrifo de João, será traduzido por “Ele”. Contudo deve-se lembrar que se trata de um pronome indefinido, que em inglês é geralmente traduzido como ‘It’.

2 comentários:

  1. Parabéns pelo belíssimo trabalho escolhido e apresentado. A biografia é de excelente qualidade. Prova que a sra...é estudiosa e dinâmica. Precisamos de pessoas que lêem e passem novidades para seu povo. Cultura é a maior herança que temos. Boa sorte

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada pelo incentivo, existem tantos temas incríveis para serem desvendados e trazidos de volta à tona!!

      Excluir