Relações de Plotino com os Gnósticos: O
inefável Um.
Aláya Dullius de Souza
Esse texto, escrito por mim um ano antes da defesa da minha dissertação de Mestrado "O Apócrifo de João e a Enéada VI 9 de Plotino - Relações sobre o Um", foi publicado em 2010 como um capítulo do livro "Sobre as Origens da Filosofia - primeiros ensaios". Um esforço do grupo Archai (editora et cetera).
Plotino, filósofo neoplatônico do século III d.C., foi discípulo de Amônio Saccas, e sua escola e seu Mestre é o tema discorrido por H.P.Blavatsky no primeiro capítulo do livro "A Chave para a Teosofia". A eles é dada grande importância. Plotino é um filósofo do silêncio, da mística, e um 'teósofo' na verdadeira acepção da palavra. Durante sua vida estabeleceu trocas e relações com alguns grupos gnósticos, e buscou conhecer sobre as filosofias do oriente. Seu legado é enorme, e sua obra culmina com a contemplação da Unidade. Espero que esse breve texto ajude a trazer mais luz sobre esses professores espirituais!
Relações
de Plotino com os Gnósticos:
Gilles Quispel, em sua resenha da
obra Six Lectures on Plotinus and
Gnosticism afirma que “o autor deste livro atingiu o que Hans Jonas havia
prometido fazer mas nunca o fez: escreveu um livro sobre o impacto do
Gnosticismo em Plotino.” (2000, p.109)[1]
No prefácio de seu livro, Sinnige declara que esteve, e ainda está, muito
presente uma tradição de vermos tudo a partir de uma perspectiva Platônica, mas
que, de modo crescente, um novo paradigma faz-se sentir em nossos dias sob a
influência de um crescente interesse no Gnosticismo.
Este interesse não cresce apenas
em trabalhos que demonstram as diferenças cruciais entre Plotino e seus
“adversarios”. Lentamente os estudos comparados que vão mais a fundo em seu
entendimento das idéias gnósticas mostram que talvez haja mais de gnosticismo
em Plotino que alguns estão dispostos a admitir.
Mazur refere que
o elemento mais crucial do misticismo de Plotino – sua concepção de
união mística com o Um - não pode ser corretamente entendido apenas no contexto
da história convencional da filosofia, mas deve ser recontextualizado de forma
mais ampla junto à prática e pensamento gnósticos… a união mística em Plotino,
a um grau significante, está tacitamente sustentada em uma estrutura retirada
da metafísica gnóstica. (2010, p.1)
Claro que há fortes diferenças
entre eles, especialmente relacionadas às suas visões a respeito da matéria e
da origem do mal, mas, como diz Joseph Katz
há um fato muito mais importante parece ter escapado
aos intérpretes. Pois é incrível como quase todas as idéias que Plotino
considera questionáveis nos Gnósticos foram afirmadas por ele mesmo de uma
forma ou outra, consequentemente, isto revela mais uma
tensão vital no sistema de Plotino do que uma mera diferenciação externa de uma
doutrina da outra. (1954,
p.289)
Para Sinnige (1999, p.01) “é
claro que nas Enéadas, as doutrinas ou mitos Gnósticos são criticados em
palavras que evidentemente são de uso comum entre Plotino e seus adversários.”
As Enéadas que possuem maior aproximação ao Gnosticismo são as que Plotino
escreveu antes da chegada de Porfírio em sua escola, cronologicamente da 1 à 21.
Puech também considera que houve uma época na
vida de nosso filósofo que seu pensamento poderia se confundir com o pensamento
gnóstico. Ele diz que “é inegável que o Gnosticismo parecia a Plotino uma
caricatura de certos aspectos de seu próprio pensamento”. (1982, p145)
Alguns acreditam que os primeiros tratados
de Plotino não demonstram somente as próprias idéias do filósofo, mas, tendo
quebrado seus dez anos de silêncio, ele também está mostrando aspectos do que
aprendeu com Amônio Saccas. Pode-se dizer, por exemplo que a doutrina da
emanação possui muito mais semelhança com o pensamento Gnóstico – e até mesmo
com o pensamento Indiano (como a Vedanta Advaita) – do que com o próprio
Platão.
Plotino aceita o emanacionismo como auto-evidente. Ele
não sente necessidade de argumentar sobre isso apelando para Platão. A doutrina
é tão fundamental ao sistema das Enéadas que é explicada em todo lugar, e em
nenhum lugar duvidada.” (Sinnige, 1999. p.08)
Este tipo de reflexão nos faz focar no
contexto cultural de Alexandria e refletir sobre que tipos de idéias podem ter
sido impressas na mente do filósofo durante os onze anos que lá viveu estudando
com Amônio Saccas, como indica Porfírio em Vita
Plotini.
Certamente muitas teorias não necessitam
serem consideradas especificamente como gnósticas, já que fazem parte de um
conjunto de idéias geralmente aceitas nas escolas de filosofia de Alexandria.
“É melhor não falar de ‘influência gnóstica’, como se
Plotino pudesse ter encontrado no sistema gnóstico algumas teorias que fossem
aptas a serem inseridas na arquitetura de seu próprio sistema. Na verdade estas
doutrinas parecem ter feito parte do ‘espírito da época’ como atesta Dodds.”
(Sinnige, 1999, p.01)
Apesar
de alguns tenderem a pensar os sistemas filosóficos e religiosos como sendo
separados um do outro, seguindo suas próprias linhas na história, devemos ter
em mente que os primeiros séculos de nossa era foram palco de inúmeras trocas
de pensamentos, especialmente quando vindos de grandes centros culturais como
Alexandria, Antioquia e Roma. A semelhança entre as idéias não pode ser
entendida como uma influência de um em outro, mas como consequência de um background em comum, um compartilhamento
dos mesmos paradigmas da época.
Portanto,
colocar Plotino no horizonte Alexandrino deveria nos
conscientizar das muitas relações familiares que se entrelaçam entre as Enéadas
e as escolas de filosofia de Alexandria. Isto nos coloca em uma posição que
favorece o entendimento da originalidade de Plotino ao mesmo tempo que
percebemos o quão profundamente ele compartilhou as convicções religiosas de
seu século. (Sinnige, 1999, p.26)
Sendo assim, somos levados a
considerar quais eram essas idéias que compartilhavam o ambiente., pois
“certamente Plotino estava familiarizado com o gnosticimo” (Mazour, 2010,
p.01). Porfírio (em Vita 3) nos conta
a história do primeiro encontro de Plotino com seu professor Amônio Saccas. A
reação de Plotino foi: ‘este é homem que eu estava procurando’. Porfírio
enfatiza que um dos possíveis e duradouros efeitos do convívio de Plotino com
Amônio foi o interesse do primeiro em seguir com a expedição do emperador
Górdio para conhecer as filosofias da Pérsia e da Índia. “O texto não deixa
dúvida quanto a presença de elementos Indianos e Persas nos ensinamentos de
Amônio.” (Sinnige, 1999, p.26). Ou
ao menos demonstra um interesse cultivado por Plotino, interesse este que
demonstra que o filósofo, tendo vivido na diversidade cultural de Alexandria,
ansiava em seu aprendizado por buscar diversas formas de pensamento, e não se
restringia a ser apenas platonista, ainda que Platão tenha permanecido como o
mais importante filósofo para Plotino.
Flávio Filostrato, em seu De Vita Apollonii descreve Brâmanes.
Clemente de Alexandria menciona sábios da Índia em suas Stromatas, e há até mesmo uma referência aos gimnosofistas que
vivam no Egito naquela época. Podemos também inferir a presença ainda notável
do Hermetismo, do Judaismo Platônico de Fílon, do Orfismo e diversos outros
tipos de filosofias, ensinamentos religiosos e tradições de mistério. O que
Plotino de fato aprendeu em Alexandria é algo que podemos apenas supor, mas
certamente a busca pelo Um e a condição da alma humana pareciam para ele serem
pontos essenciais de sua busca, e ele estava disposto até mesmo a ir à Índia
para aprender mais.
E quanto ao Gnosticismo? O que há
de gnóstico naqueles primeiros séculos da era cristã? Amônio Saccas foi
contemporâneo de Bardesanes, ligado ao gnosticismo de Tomé, na Síria, e
conta-se que Bardesanes esteve em Alexandria. Como ja vimos, uma obra cuja
edição é atribuída a ele (autoria atribuída a Tomé), o Hino da Pérola, descreve de forma alegórica a queda da alma, que
deve recuperar uma pérola do fundo do oceano e retornar à sua patria, mas que
se mistura aos ‘habitantes locais’ e esquece de sua missão. A descrição é
bastante análoga ao modo como Plotino descreve a queda da alma, a alma que deve
despir-se de suas vestes do mundo para contemplar o Um.
Outro importante exponente
gnóstico a ser lembrado é Basílides, que viveu um século antes de Plotino. A
“descrição de suas doutrinas é sem duvida talhada nos conceitos da tradição
Platônica… podemos encontrar algumas teorias metafísicas que demonstram mais do
que uma semelhança superficial a temas Plotinianos.” (Sinnige, 1999, p.28) Não é
improvável que Plotino possa ter tido contado com os ensinamentos de Basíledes.
Valentino, que educou-se em
Alexandria e conhecia Orígenes, ensinou em Roma entre os anos 135 e 160 d.C. E
sua escola perdurou até a época de Plotino. O tratado II 9, intitulado por
Porfírio por Contra os Gnósticos é
geralmente considerado como resultado de um conflito com membros dessa escola
de Valentino., como Sinnige indica (1999, p.35) Além disso, Puech (1982, p.139)
considera que há consideráveis pontos de contato entre as doutrinas de Numênio
de Apamea, mestre de Amônio Saccas, e Valentino, o que nos trás mais
inferências a respeito de um possível contato de Plotino com idéias gnósticas.
Dodds (Puech, 1982, p.146) afirma
que Numênio, além de conhecido Neopitagórico e Platonista, era certamente
Gnóstico. Não em um sentido estrito, afinal Numênio não utiliza a terminologia
característica dos textos gnósticos, contudo, muitas de suas idéias encontram
ecos nas idéias apresentadas por estes. Tal afirmação de Dodds a respeito do
mestre do professor de Plotino é certamente notável. Vale lembrar que Numênio
viveu em Apamea, próximo a Antioquia, cidade esta que foi um dos mais fortes
focos do gnosticismo na antiguidade. Foi em Antioquia que líderes gnósticos
como Menander e Satornilo ensinaram.
Além disso, sabemos, através de
Porfírio, que Numênio era lido na escola de Plotino, e que a semelhança de
certos aspectos entre o pensamento de Plotino com o deste “gnóstico” era tanta
que Amélio teve que defender Plotino de uma acusação de Plágio de Numênio. Se
havia alguma influência gnóstica no ensinamento de Numênio, certamente esta
chegou a Plotino, seja através de Amônio indiretamente, seja diretamente
através da presença de alunos de Numênio na escola de Plotino, e o estudo de
seus textos em Roma.
As datas, o lugar onde Numênio viveu, o incrível
paralelismo entre ambas doutrinas, tornam bastante plausível considerarmos a
influência do Gnosticismo, talvez em sua forma Valentiniana, em nosso filósofo
de Apamea. Isto já foi sustentado pela maioria dos críticos. A gnosis era o
ponto de contato entre o oriente – especialmente o Irã, que, por exemplo,
relaciona seu dualismo com Basílides – e Numênio, que construiu seus sistema
sobre a estrutura da Gnosis. (Puech, 1982, pp.88-89)
Levando estas perspectivas em conta, podemos
inferir muitos “pontos de contato”, possíveis pontes entre Plotino e o
Gnosticismo (que por si mesmo ja é bastante heterogêneo). Por muito tempo os
estudos em relação a esta temática se focaram de forma quase que unilateral
apenas nas discrepâncias entre esses dois “sistemas”, já que o próprio filósofo
de fato se dedicou a apontar estas diferenças, que são, certamente, bastante
claras e não podem, de forma alguma, serem negadas. Entretanto, como pesquisadores,
devemos permitir a nós mesmos considerarmos que semelhanças e aproximações
também possuem relevância no estudo.
Por fim, e não menos importante,
Hanckock, em seu artigo Teologia Negativa
no Gnosticismo e no Neoplatonismo (Wallis, 1992), declara que apesar de
existirem diferenças de perspectiva entre o Gnosticismo e o Neoplatonismo, a
“Biblioteca de Nag Hammadi demonstra que as duas escolas estão plena harmonia
no que se refere à teologia negativa”, isto é, no modo em que abordam o Um. E a
experiência hipernoética, isto é, o retorno ao Um, era certamente o âmago da
filosofia plotiniana.
Se
confiarmos em Porfírio (VP 23) o
objetivo final da vida de Plotino e de sua filosofia era a uniao mística – isto
é, a conjunção, assimilação ou completa identificação – do âmago do ser humano
com o supremo e transcendente princípio, o Um. Ao longo das Enéadas Plotino
repetidamente implica que ele teve essa experiência, e Porfírio confirma que
Plotino atingiu a união em quatro ocasiões em que estavam juntos (VP 23. 16-17).
Mas o que de fato isso significa é altamente enigmático. (Mazour, 2010, p.01)
O Inefável Um:
Assim, falar sobre o Um, torna-se
um problema para o historiador da filosofia, já que esse ato de união, como
demonstra Plotino (VI.9.4.1-4),
está além dos parâmetros da filosofia convencional. Não se trata de um mero
discurso filosófico, havia uma prática que sustentava esse discurso.
Para
Mazour (2010, p.01) essa união mística em Plotino era “estruturada em uma
metafísica gnóstica e derivada de uma internalização da prática gnóstica,” que
Plotino corrigiu e reformulou em termos do platonismo. Portanto, ainda que
muitos estudiosos considerem o misticismo em Plotino como um aspecto
constrangedor ou irrelevante do pensamento de Plotino, “como um tipo de
irracionalidade sub-filosófica” (Mazour 2010, p.02), deveriamos buscar entender
o contexto religioso e filosófico em que Plotino situou sua busca, já que os
“estágios mais elevados de ascenção mística em Plotino não envolvem cogitações
filosóficas. (Mazour, 2010, p.02)
Para tanto, é útil buscar compreender se há
pontos em comum quanto à visão sobre o Um entre os ensinamentos apresentados
nas Enéadas e outras “linhas de pensamento”, como por exemplo, os gnósticos.
Entender como eles viam o Um, ou até que ponto foram influenciados pelo
médio-platonismo, nos auxilia a encaixar Plotino em seu devido contexto e a
traçar novas perspectivas a respeito de sua filosofia.
Geralmente entende-se que a união com o Um se
trata de uma “segunda senda”. Isto é, primeiro a alma se despoja de suas vestes
do mundo através de um longo processso de preparação, uma espécie de ascenção
filosófica ou contato com as verdades imanentes. Tal prática se dará através da
dialética, do desenvolvimento de virtudes, da purificação e da busca pelas Belezas
inteligíveis. Progressivamente a alma deixa de se envolver com as preocupações
externas e deixa de confundir o sensível com o inteligível. Gradualmente a alma
assimila a hipóstase do Nous. Depois disso, daria-se um processo de
contemplação, de cessação da dualidade na alma, produzindo-se assim uma
completa e silenciosa união com o Um.
Assim, o Um, como meta final, torna-se o objeto
de nosso estudo, visando um melhor entendimento de como este é descrito por
Plotino e por certos gnósticos. Geralmente o Um é colocado como “absoluta
unidade, sua simplicidade última o torna inacessível a qualquer tipo de
intelecção comum, que necessita ao menos de uma dualidade lógica mínima entre
sujeito e objeto de conhecimento. O Um, portanto, habita fora da visão puramente
discursiva da filosofia.” (Mazour, 2010, p.01)
Podemos encontrar algum tipo de
concordância entre as Enéadas e os textos gnósticos, especialmente no que se
refere aos tratados do primeiro período de Plotino, a respeito da inefabílidade
do Um e os primeiros capítulos do Apócrifo
de João.
A Enéada VI 9, cronologicamente a
nona, é o ultimo tratado na longa sequência de Enéadas organizadas por
Porfírio. “Ele a colocou no final como uma jóia que coroa o ápice da filosofia
Plotiniana, a contemplação do Um, mas na ordem cronológica esta Enéada faz
parte de uma série de cerca de 12 tratados inciais, os primeiros a serem
escritos por Plotino. Essa série revela uma preocupação fundamental: guiar a
alma à seu destino final.” (Sinnige, 1999, p.20)
Esta Enéada começa com uma
análise metafísica do conceito de Unidade, e o ponto central do argumento é que
o Um pode apenas ser objeto de contemplação, tendo sido extinguida a dualidade
que distringue objeto de sujeito. “O conhecimento do Um não pode ser alcançado
pelo pensamento” [VI 9 (9) 4, 13]
Atribuir qualquer tipo de
característica ao Um, a fim de tentar entendê-lo através do pensamento é algo
extremamente delicado, pois os ensinamentos sobre o Um referem justamente que
ele não pode ser qualificado.
Apesar disso, há algumas idéias
que surgem dessa tentativa de explicar em palavras o que não é dual, dessa
forma podemos trabalhar afim de encontrar denominadores comuns entre Plotino e
os Gnósticos.
A primeira delas é que ao Um nada
falta, de nada o Um tem necessidade, e não há nada ante ele.
Também podemos dizer que o Um não
é como um Ser ou um Deus: “O Primeiro não é um ser, mas precede todos os seres
[VI 9 (9) 3].” Em outra passagem [VI 9 (9) 6] Plotino afirma que se pensamos no
Um como Mente ou Deus, estamos pensando de forma muito errada.
O Um não pode ser medido, pois
não possui forma, nem pode ser qualificado: “O Um é sem forma… não é uma coisa,
nem uma quantidade, não é qualidade, não é intelecto nem alma; não está em
movimento nem está em repouso, não está em um lugar nem está no tempo: é
auto-definido, único em forma ou melhor, sem forma, existindo antes da Forma”
[VI 9 (9) 3].
Outra definição que podemos dar
ao Um é a impossibilidade de ser nomeado: “Nenhum nome pode ser atribuído
adequadamente a ele, no entanto, como é preciso nomeá-lo, podemos chama-lo de
‘Um’.” [VI 9 (9) 5].
Há também uma impossibilidade de
compreensão, pois está além do conhecimento: “A consciência em relação a esse
Princípio não vem nem através do conhecimento nem através da Intelecção que
descobre os Seres Intelectuais, mas por uma presence que transcende todo
conhecimento. No processo de conhecer, a mente ou alma abandona sua unidade…
Todo objeto de pensamento, até mesmo o mais elevado, devemos deixar passar…
‘Não deve ser objeto de discurso, nem de escrita’: se falamos e escrevemos a
seu respeito é apenas para conduzir a ele, para encorajar a contemplação” [VI 9
(9) 4].
A busca de Plotino é a busca pelo
mundo Inteligível – que para os Gnósticos corresponde, de certa forma, ao
Pleroma – pela contemplação do Um. É uma busca pela sabedoria imanente, e,
neste sentido, podemos dizer que é uma busca pela gnosis, pois gnosis é um
conhecimento imanente, uma sabedoria que surge a partir da vivência, de
despertar. Este alvo, a gnosis,
reflete uma experiência vital de sabedoria, onde a contemplação leva à cessação
da dualidade interna.
Assim, pelo Apócrifo de João ser um dos textos gnósticos mais lidos e copiados
na antiguidade, ele nos fornece uma boa base para nosso estudo comparativo.
“Wolf-Peter Funk argumentou que as diferenças dialéticas entre os textos dos
codices de Nag Hammadi indicam que foram repetidamente copiados e
distribuidos.”(King, 2006, p.18)
Este texto permaneceu
“completamente desconhecido para o mundo moderno até 1896 quando um papíro do
século IV d.C. apareceu no Mercado de antiguidades do Cairo.” (King, 2006,
p.08) Então, em 1945, com a descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi, mais três
copias chegaram às nossas mãos. “Duas cópias de uma versão mais longa, dos
codices II e IV, são praticamente idênticas.” (King, 2006, p.25)
O Apócrifo de João que está no
Códice de Berlim é a maior das cópias, com 58 páginas; as versões de Nag
Hammadi possuem uma media de 40 páginas. Estas cópias são traduções do Grego
para a lingua Copta. Os manuscritos parecem ter sido copiados ínumeras vezes, o
que corrobora a idéia de uma ampla circulação.
É um texto composto de pelo menos
quarto seções – Cristã, Judaica, Platônica e um Hino ao fim. De forma geral é
uma obra de características setianas. Talvez possamos pensar que a introdução e
finalização de tom cristão seja uma adição posterior, quem sabe feita pelos
valentinianos, que foram considerados os mais cristãos dentre os grupos
gnósticos.
King (2006, p.10) afirma que é relativamente
fácil remover todas as referências a Jesus e a João sem bagunçar a história
central da obra. Os dois nomes aparecem apenas na introdução e conclusão. Sem
estes elementos, indica King, nada de especificamente cristão remanesce na
obra.
Sobre sua datação, é provavel que
seja do Segundo século.
A evidência mais recente que temos da existência do Apócrifo de João é
encontrada nos escritos de Ireneu, um teólogo cristão de Smirna, na Ásia Menor,
que visitou Roma e mais tarde tornou-se bispo de Lyon. Em torno de 180 d.C. ele
escreveu uma obra polêmica, comunmente conhecida por Contra as Heresias. Nela, ele relata uma teogonia, uma história da
geração do Reino Divino, que mostra muita semelhança com a teogonia do Apócrifo
de João. As semelhanças são suficientemente próximas para que tiremos a
conclusão de que Ireneu deve ter tido contato com pelo menos alguma versão do Apócrifo de João. Já que ele escreve sua
refutação em Roma, então possivelmente esta versão tenha sido conhecida pelos
cristãos que viveram em torno de 180 d.C. (King, 2006, p.17)
Nosso foco de estudo são os
capítulos quarto e cinco do Apócrifo de
João, logo após a introdução cristianizada do texto. O capítulo quarto
começa com uma “descrição da Deidade transcendente, pintada primariamente com
imagens, termos e conceitos prevalentes na especulação filosófica Platonista
corrente na época. Essa Deídade transcendente é descrita como uma Mônada, uma
unidade indivisível, a fonte e fundação de tudo” (King, 2006, p.85). É uma
descrição apofática, semelhante à que encontramos em Plotino.
Encontramos neste Apócrifo
algumas características atribuídas ao Um na tentativa de trazê-lo ao discurso
bastante semelhantes àquelas que foram exemplificadas a partir da Enéada VI 9.
Em relação a não carecer nada é
dito que “não há nada antes Dele[2],
nem ele necessida de nada. Não necessida vida” (BG 4, 7-8). Também lemos que
“Ele é eterno já que não necessita de nada. É totalmente perfeito. Nada lhe
falta.. É sempre completamente perfeito na luz” (NHC II 4, 10-12).
O
autor deste texto também afirma que não é como um Deus: “Não é perfeição nem
bem-aventurança nem divindade, é algo muito superior” (BG 4, 22-25). Na versão
encontrada em Nag Hammadi é ditto que: “Não é apropriado considerá-lo como um
deus ou algo similar. Pois é mais que divino, sem nada existindo acima dele,
pois nada o rege.” (NHC II 4, 5-6).
Similar a Plotino, o equivalente
ao ‘Um’ neste apócrifo não possui forma nem pode ser medido ou qualificado. Em
NHC II 4, 13 vemos: “Não pode ser limitado pois não há nada antes dele que
possa limita-lo, é inescrutável (14), imensurável (15), invisível (16)… Não é
uma qualidade (27).” E no Códice de Berlim: “Não é corpóreo nem incorpóreo. Não
é grande nem pequeno” (BG 4, 22-25).
Quanto
a não ser possível nomeá-lo, o Apócrifo de João afirma que é inefável já que
ninguém pode compreende-lo para falar sobre ele, “existe na pura luz para qual
olho algum é capaz de olhar” (NHC II 4, 3-4). “É inominável pois não há nada
anterior a ele para dar-lhe um nome” (NHC II 4, 18-19).
Outras características facilmente
encontrada nos ensinamentos de Plotino também são encontradas nesse texto
gnóstico. Obviamente nem sempre são descrições idênticas, mas os paralelos são
bastante fortes. Há até mesmo similitudes quanto a descrição da emanação de uma
segunda hipóstase, que surge a partir de uma ação de auto-reflexão do Um, que
gera um pensamento ativo. Para os gnósticos, em geral, a segunda hipóstase é
Barbelo, a Pronoia (Pensamento-Primeiro), que é a Mãe-Pai (não dual mas contend
a dualidade em si), o útero gerador do mundo Inteligível.
A busca de Plotino pelas realidade do
Intelecto e do Um é primariamente pelo meio dialético – apesar de que podemos
incluir o modo erótico também – e por meio da contemplação. Não se trata de
erudição nem de acúmulo de conhecimento. Plotino mesmo indica que na
contemplação do Um até mesmo os pensamentos mais elevados devem ser deixados de
lado. Na experiência da unidade não há espaço para a dualidade de um sujeito
que conhece um objeto.
É um conhecimento que vem
como decorrência do que os gnósticos chamariam de pistis. Não em seu sentido comum de ‘fé’, mas de uma convicção
decorrente de um despertar da sabedoria; de uma convição fruto da vivência que
tira os véus da ignorância e experência o silêncio do Um. Isto é para os
gnósticos a busca da gnosis.
Como disse Gabriela Bal (2007) certa vez, “ler
Plotino é penetrar em um pensamento que aparentemente ultrapassa toda a possibilidade de
compreensão.” Pois quando a alma se retira para a unidade, se torna idêntica a
seu objeto de contemplação.
Assim,
“despojados de todo o mal em nossas intenções em direção ao Bem, devemos
ascender ao Princípio em nós mesmos; de muitos, devemos nos tornar um; apenas
assim atingimos o conhecimento daquilo que é Princípio e Unidade.” (Em. VI 9
(9) 3)
Bibliografia:
BAL,
Gabriela. Silêncio e Contemplação: Uma introdução a Plotino. São Paulo, Paulus,
2007.
KATZ, Jospeh. Journal of
the History of Ideas, Vol. 15, No. 2. Abril, 1954.
KING,
Karen. The Secret Revelation of John.
Cambridge, Harvard University Press. 2006.
LAYTON,
Bentley. “As escrituras Gnósticas”. São Paulo: Loyola, 2002.
MACKENNA,
Stephen. “Plotinus, the Enneads”. New York: Larson Publications, 1992.
MAYER, Marvin. “The Nag Hammadi Scriptures”. New York:
Harper, 2007.
MAZOUR, Zeke. “The Platonizing Sethian Gnostic Background of
Plotinus’ Mysticism” (projeto de dissertação de doutorado). University of
Chicago, 2010.
PUECH, Henri-Charles. En Torno a la Gnosis. Madrid: Taurus,
1982
QUISPEL, Gilles. Vigiliae Christianae, Vol. 54, No. 1, 2000.
SINNIGE,
Th. G. “Six Lectures on Plotinus and Gnosticism”. Dordrecht: Kulwer, 1999.
ULLMANN,
Reinholdo Aloysio. “Plotino, um estudo das Enéadas”. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2002.
WALLIS, Richard T.
“Neoplatonism and Gnosticism”. State University of New York Press, 1992.
Parabéns pelo belíssimo trabalho escolhido e apresentado. A biografia é de excelente qualidade. Prova que a sra...é estudiosa e dinâmica. Precisamos de pessoas que lêem e passem novidades para seu povo. Cultura é a maior herança que temos. Boa sorte
ResponderExcluirObrigada pelo incentivo, existem tantos temas incríveis para serem desvendados e trazidos de volta à tona!!
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